Oxente…anarquize!

Na difusão do pensamento libertário, um blog que busca a construção da ideia anarquista/libertária, com uma dose de humor e ironia, na medida certa. Publicações de clássicos do anarquismo, textos críticos em diversas áreas, imagens comentadas, etc.

Contribuições!

Olá à todxs,

Como foi informado anteriormente através da página do Oxente…Anarquize! no facebook, seria aberto a todxs o envio de textos para serem inseridos no blog permanentemente.  Finalmente o momento chegou, consegui um e-mail do RiseUp!

Então vamos lá. enviem seus textos, fotos comentadas, críticas à posições políticas, sua visão do anarquismo, etc – a temática só precisa ser libertária/filosófica/anarquista/ácrata/histórica/sociológica/antropológica/cultural, ou seja, algo ligado ao tema do blog… é aceito também sugestões por e-mail ou deixadas nos comentários. =)

Enfim, o e-mail é oxenteanarquize@riseup.net … não irei restringir nenhuma publicação, contudo é preciso guiar-se pelo bom senso e respeito, irei postar tudo na íntegra, sem cortes, exatamente como me mandarem.

É isso, contribuam, escrevam, desenvolvam o pensamento relacionado ao anarquismo e ao pensamento libertário, isso servirá como amadurecimento de ideia e de debate.

Saudações Libertárias

nightwollf

 

Anarquismo e as formas de ação

O anarquismo possui um dilema: ação versus isolamento. Esses dois posicionamentos correspondem ao um elaborado conjunto de decisões que dialogam com a visão de um anarquismo como entidade viva e com corpo ideológico composto por indivíduos. Além disso, estão interligados com experiências repressivas, desgostos, posicionamentos filosóficos e psicologia de cada indivíduo envolvido na construção da ideologia.

Devido às experiências, tanto na sua origem, no século XIX, quanto a sua difusão no nascer do século XX, o anarquismo possuiu um posicionamento ativo, contra não só o capitalismo, mas suas representações, feições e ofensivas. Surgiram organizações, grupos
sindicatos, grupos e indivíduos que devotaram suas vidas a ação direta, a oposição direta a um sistema. Geralmente, tais grupos e indivíduos formaram um corpo que dava vida as ideias, tornando o anarquismo um Ser que possuía diversas abordagens, ações e referências filosóficas, apesar disso, permanecendo uma entidade que, em certa medida, possuía um só conjunto, nomediretrizes e ideias. Assim o anarquismo vivia, respirava e reproduzia-se na mente, ideias e ações em torno do mundo.

O anarquismo começa a perder essa vida, em certo modo, devido a repressão. Os Estados embarcam em uma perseguição ideológica e aos indivíduos envolvidos, esses últimos reagem com maior organização e ação. Porém, apesar dessas iniciativas, o anarquismo
sofre um declínio por todo mundo, seja pelas guerras mundias ou com agressão do Estado. É nesse período que o anarquismo deixa de ser um Ser construído pelas experiências e aspirações de grupos e pessoas envolvidas, para se tornar um emaranhado de indivíduos, em sua maioria isolados que, pela desconfiança, perseguição ou o esgotamento pela tradicional forma de luta, se isolam em diversas comunidades, grupos, coletivos e simples indivíduos que não optam pela reunião ou organização clássica.

Esse isolamento abandona a ideia do anarquismo como entidade viva, corpo único ou ideologia, passando agora a ser conjunto moral reduto e refúgio para aqueles cansados de um sistema que oprime. Essa “fuga” influenciou o anarquismo contemporâneo e suas
novas abordagens: primitivismo, ambientalismo e individualismo. Seja o reduto fora dos grandes centros urbanos, ou dentro das individualidades e do cotidiano dos envolvidos, o anarquismo agora não possui o grande objetivo do século XIX “tornar o mundo anarquista”, ironicamente apropria-se da “criação pela destruição” bakuniniana e insere-se como opositor direto da paz imediata. Daí surgem grupos sem uma organização formal, anônimos e desconhecidos, sem o elo e conexão pessoal das antigas formas de organização. É um anarquismo etéreo, sem forma e de rápida vida, com o objetivo de atacar uma vasta simbologia ou moralidade vigente em uma sociedade que se apega pelo pacifismo violento do cotidiano capitalista. Algo parecido com ação de um grupo guerrilheiro, ação rápida, impactante e simbólica. (REUNIÂO-AÇÂO-RECUO)

O movimento Punk e ciberpunk de finais dos anos 80 e inicio dos 90 surgem como forma de expor a individualidade descontente. Uma primazia pelo anonimato e sigilo, contendo, entretanto, a ideia criadora de uma nova sociedade. Um individuo é completo
com a ação do outro, não como grupo, mas como pessoas isoladas formando uma espécie de grupo disforme, não reconhecendo-se como grupo organizado. Se pretende, com isso, uma reação em cadeia, isoladamente organizada pelo instinto, pela ideia e pela iniciativa, ainda com o objetivo de uma nova sociedade, onde o sigilo e a individualidade são respeitadas ao máximo, fazendo assim a liberdade ter um novo sentido: o anonimato (isso dentro de uma sociedade largamente conectada, onde não só o governo, mas qualquer grupo, empresa ou instituição, tem acesso quase irrestrito a qualquer informação sobre os indivíduos).

Assim como a organização e ação foram consequências do período inicial do anarquismo – a formação de sindicatos, grupos de ação, jornais, livros, etc – na contemporaneidade as ações individuais, isoladas e eventuais, são consequências da dinâmica social atual.

Por Thiago Cunha

Hedra, História Editorial: Representações do anarquismo no Brasil

Esse texto é uma adaptação de um trabalho de conclusão de curso  que consiste numa análise sobre as representações do anarquismo no Brasil, através da coleção “Anarcos de Bolso” produzida pela Editora Hedra, de São Paulo.

Hedra, História Editorial: representações do anarquismo no Brasil

Autor: Thiago Cunha

  1. Introdução
  2. Elementos Editoriais
  3. Construção temática da coleção

INTRODUÇÃO

O imigrante europeu que chegou ao Brasil, em finais do século XIX, para substituir a mão de obra escrava que já encarava seu fim, trouxe não só as expectativas de mudança de vida na América, mas também a ideologia anarquista que na Europa se consolidava como movimento sindical e filosófico de oposição ao capitalismo e a todo tipo de opressão realizada pelos Estados Nações. Os livros sobre anarquismo adentraram em terras brasileiras trazidos principalmente pelos italianos, alemães e poloneses, familiarizados com os escritos de Malatesta, Proudhon e Bakunin, três dos principais autores do anarquismo do século XIX.

Da extensão filosófica do anarquismo a vertente mais usada e aceita no Brasil foi o anarcossindicalismo, com uma ideologia de organização centrada no coração do sindicato que, ao mesmo tempo sendo o reduto da luta operária, se converteu também no centro cultural e transformador da consciência do trabalhador. Já em 1906, através do congresso operário que foi realizado no Rio de Janeiro, os trabalhadores escolheram o anarquismo como ideologia que os guiaria na luta por melhores condições, redução da jornada de trabalho e abolição do trabalho infantil, dentre outras revindicações.

O anarquismo propunha a abolição total do Estado e a substituição pela autogestão, uma administração com participação popular através de assembleias e, em alguns casos, democracia direta. O caminho para a consagração das ideias anarquistas era a conscientização política e a educação, não só do proletariado, mas de todos os explorados. Diferente do socialismo, o anarquismo não distinguia setores, classes ou segmentos virtualmente revolucionários ou supostamente contrarrevolucionários, como afirma Woodcock:

Os anarquistas tinham uma tendência a considerar como rebeldes pela própria natureza os déclassé, que Marx desprezava, sobretudo por não se enquadrarem no seu rígido modelo de estratificação social; em consequência, o movimento anarquista sempre manteve estreitas ligações com aquele mundo sombrio onde rebelião e criminalidade se misturavam […]. (1986, p. 79, grifo nosso)

Em resumo, os anarquistas não consideravam o proletariado classe universal, predestinada a se constituir como vanguarda do processo revolucionário. Em outra discordância com o socialismo, o anarquismo valorizava o primitivo, a vida em pequenas comunidades, propondo na verdade uma espécie de simplificação da vida social.

O anarquismo parte do pressuposto de que, em primeiro lugar, o homem é um ser naturalmente social e que todo indivíduo que é dotado de razão, assume assim que toda autoridade é desnecessária, e vai além: qualquer forma de autoridade é nociva, prejudicial aos interesses dos indivíduos e das comunidades. Segundo Proudhon:

“Quem quer que coloque a mão sobre mim para governar-me é um usurpador e um tirano – eu o declaro meu inimigo” (2007, p. 30).

A anarquia, não só no Brasil, mas em todo lugar onde ela mobilizou segmentos da população, foi identificada como desordem, destruição e caos, simbolicamente associado à Hidra de Lerna, monstro mitológico grego. A maioria dos pensadores do anarquismo privilegia o momento da destruição da velha sociedade ao momento da construção da sociedade nova, o que leva o Estado a identificar o anarquismo como uma filosofia ameaçadora, logo associada ao terror, tanto pelos governos quanto pelo senso comum.

No Brasil, o anarcossindicalismo lutou contra a exploração do Estado e dos patrões, encarregou-se de protagonizar a luta pela redução da jornada de trabalho e aumento salarial. Caracterizou-se, ainda, pela recusa na participação da luta política institucional e eleitoral. Os militantes anarquistas organizaram greves, passeatas, manifestações de rua e a mobilização da própria classe trabalhadora. Não só como reduto de organização do operariado, o sindicato libertário também era um reduto cultural e educacional para o trabalhador. Era preciso conscientizar o operário da sua exploração, fazê-lo ser protagonista da sua própria libertação. Organizavam assim manifestações culturais, escolas livres, modernas ou racionais e algumas universidades populares. Todas essas manifestações e instituições culturais tinham como principal função a mobilização, a conscientização dos explorados – forjar ou reforças consciências revolucionárias – formar um homem novo, livre e soberano, através de um discurso didático e objetivo em que a questão social é a temática central e a revolução social é o fim almejado.

Em novembro de 1918, a cidade do Rio de Janeiro iniciou um verdadeiro renascimento que foi recuperando os efeitos da devastação provocada pela epidemia e pela fome, consequência da gripe espanhola. O jornal A Razão – periódico operário do inicio do século XX – enfatizou, em uma das suas edições, a “progressão aniquiladora da fome” que atingia em especial os subúrbios, mas também o coração da cidade, principalmente entre as famílias mais pobres. Criticou duramente também a violência policial contra os operários e a população pobre em geral:

As violências praticadas pela polícia arbitraria do Sr. Aurelino Leal já atingem ao máximo absurdo. O proletariado, que no governo Wenceslau foi duramente perseguido e espezinhado nos seus direitos, é agora vitima dos últimos arrancos, das derradeiras violências da administração policial que estrebucha. (A RAZÃO, 1918, p. 160)

O jornal alertou também para uma eminente Revolução Social, que viria através de uma greve geral: “E essas infames violências poderão trazer para o governo que vai começar no dia 15 uma surpresa desagradável: a greve geral, como protesto coletivo a essas vilanias do Sr. Aurelino, e talvez até uma revolução popular”. (A RAZÃO, 1918, in p. 160) .

No Rio de Janeiro, em vésperas da Insurreição Anarquista de 1918, era esse o quadro: grande insatisfação do operariado devido à fome que assolava a cidade e todo país por causa da gripe espanhola e também como consequência da Primeira Guerra Mundial, já em seus últimos dias. No dia 15, após o Presidente eleito, Rodrigues Alves, ser afastado por enfermidade e seu interino, o vice Delfim Moreira, ser escolhido pelo cargo, o Jornal do Brasil publicou um artigo chamado A Paz Social – a ordem no trabalho, como tentativa de manter os operários inertes e uma forma de opor, ideologicamente, a mobilização dos militantes anarquistas, em que enfatizava a necessidade do respeito à ordem, à autoridade e à disciplina:

Finda a guerra, isto é, subjugado o militarismo prussiano […] resta agora aos povos, que se mobilizaram para a luta, gozarem tranquilamente os frutos da liberdade, da justiça e do direito […] E ao Brasil mais do que nunca se desenha um futuro verdadeiramente auspicioso […] Todas essas esplêndidas oportunidades demonstram a vida intensa do trabalho, que se vai desenvolver no Brasil e as magníficas possibilidades que se deparam aos nossos operários. Mas, para que possamos dela gozar, nunca como neste momento, impõem-se à nossa sociedade a ordem, o respeito a autoridade, a fé no poder da democracia, o trabalho dentro da disciplina, para o gozo sereno da paz social. (JORNAL DO BRASIL, 1918a, p. 160)

Foi no dia 18 de novembro de 1918, no Campo de São Cristovão, entre as 15 e 16 horas, que houve ápice da repressão aos anarquistas no Rio de Janeiro. Os trabalhadores têxteis paralisaram simultaneamente o trabalho, declarando-se em greve; os trabalhadores da construção civil e os metalúrgicos também aderiram à greve e vários outros grupos de operários grevistas começaram a convergir para o campo, tomado por volta das 17 horas por centenas de trabalhadores. O Jornal do Brasil descreveu assim os acontecimentos:

Ontem, cerca das 17 horas, foram chegando ao Campo São Cristóvão grupos de operários, que em atitude pacífica, iam cada vez mais engrossando a onda. A policia do 19º Distrito que tivera conhecimento antecipadamente desta reunião estava a postos.

Começaram então a circular boatos, e cada qual o mais desencontrado, sendo que alguns emprestavam aos operários ideias sinistras. […] Por fim as ordem foram positivas. O chefe de polícia determinava ao delegado que dissolvesse o grupo. […]

Aproximando-se do grupo, o delegado dirigiu-se a alguns operários intimidando-os a que se dissolvessem em nome do chefe de polícia. […] A situação, de momento, tornou-se complicadíssima e aquele grupo enorme procurou envolver os policiais, que recuavam. […] Do grupo operário foi, então, disparado um tiro de revólver, justamente no momento em que um soldado empunhava a sua pistola. […] A polícia, batendo em retirada, também disparou as suas armas, recolhendo-se à delegacia no Campo de São Cristóvão. […] Havia uma perfeita conflagração, sendo cerradíssimo o tiroteio entre os policiais e os operários. Esses, em dado momento, fizeram explodir uma bomba de dinamite no Campo de São Cristóvão e logo em seguida outra dentro da delegacia. […]

A força de cavalaria do Exército, já então auxiliada pela policia, saiu em perseguição dos operários, que já se achavam desorganizados e corriam em todas as direções, fugindo à cara de cavalaria. […] Estava estabelecida a ordem no Campo de São Cristóvão”. (JORNAL DO BRASIL, 1918b, p. 163 -– 164)

A insurreição se resumiu a um confronto direto com a polícia, caracterizando-se pelo uso de bombas por parte dos operários e pela imposição da ordem por parte das forças repressivas. O objetivo mais amplo da insurreição era concretizar a utopia libertária, tornar realidade a desejada Revolução Social. Pretendiam, armados, derrubar o governo constituído e, a exemplo da Rússia Soviética, formar uma junta de operários e soldados, abrindo caminho, dessa forma, à construção de uma sociedade sem classes e sem exploração, sem Estado e sem dominação.

Após os acontecimentos de 1918 e com a chegada da década de 1920, o anarquismo experimentou um declínio no Brasil devido à forte repressão do Estado após as greves e manifestações de rua, mas também ao sucesso da Revolução Russa, que fez expandir o socialismo no país, situação que proporcionou a vários militantes anarquistas não só auxiliar a formação do primeiro Partido Comunista do Brasil, mas abandonar a filosofia libertária. Devido a forte perseguição a anarquistas durante a Primeira República – ou durante todo período da República brasileira – houve sempre uma preocupação, por parte da militância, a respeito dos textos, livros, jornais e periódicos produzidos em favor do movimento. Essa repressão modelou não só a forma de como era feita a organização e ação dos militantes, mas obrigou mudanças necessárias na produção textual do anarquismo. Para combater a disputa ideológica do Estado, diversas organizações libertárias viram-se forçadas a adotar uma fragmentação textual que auxiliaria numa maior difusão, já que o formato dos textos não serviria, somente, para o estudo ou uma simples perpetuação ideológica, mas desenvolveria um discurso opositor e combativo, além de caracterizar-se como brochuras e folhetos de e para, protesto. Uma forma de difundir ideologicamente o anarquismo, onde a ideia do livro, torna-se apenas necessária quando trata-se de autores e publicações estrangeiras, como fonte “clássica” ou matriz textual e de discussões. As poucas editoras são frutos de um esforço coletivo da militância e das organizações ativas que se opõem ao Estado, com objetivo de lutar e difundir o anarquismo, e não com o intuito de reunião textual.

“[…] diante do fechamento dos canais institucionais de participação política e social a partidos, sindicatos, movimentos políticos, sociais e culturais etc – a atividade editorial, mediante a edição de livros cujo conteúdo se caracterizava pela oposição ao governo da época, passou a ser alternativa para aqueles grupos e pessoas que tentavam atuar e influenciar politicamente de forma publica, mesmo sob um regime ditatorial”. (MAUÉS. 2013, p.12)

O anarquismo materializa a prática em escritos, compilações, livros, periódicos e brochuras que auxiliam a transmissão de ideias sem precisar da presença simbólica de líderes ou personalidades. Existe uma coletivização não só na prática, mas na leitura e estudo do anarquismo. Não basta só o conhecimento histórico ou filosófico, é preciso completar com a prática todo conhecimento adquirido. Para isso, ao longo das décadas, diversas pessoas, editoras, jornais, periódicos e grupos se dispuseram a transmitir o conhecimento anarquista. Foi necessário, como primeiro passo, individualizar a escrita e, consequentemente, a leitura. Contraditoriamente, constituir propriedades literárias na esperança de que esses conhecimentos individuais se expandissem, ganhando uma dimensão coletiva na prática diária ou em grupo e coletivos que seguem o ideário anarquista.

No Brasil, experiências de coletivos e grupos despertaram o interesse para a formação de editoras, jornais e periódicos com abordagens anarquistas, atendendo a um público cada vez mais jovem que, em finais do período ditatorial no Brasil, não teve acesso a essas leituras. Foi nesse momento que houve uma modesta explosão na publicação de livros sobre o anarquismo; editoras, em muitos casos fundadas por anarquistas ou simpatizantes da filosofia libertária, começaram a produzir títulos que englobavam as grandes personalidades anarquistas do século XIX, mas trazendo também os novos rostos do anarquismo contemporâneo: com novas ideias de organização, prática e teoria.

Para concretizar esse objetivo de uma nova repaginação do anarquismo na contemporaneidade, foi preciso modificar as abordagens, o formato dos textos, conduzir a teoria em um sentido que seduzisse as novas gerações. Nessa remodelação do anarquismo, já na década de 1960, com a explosão da contracultura, foi preciso redefinir as abordagens, práticas e formas de organização do anarquismo. Surgiram novas vertentes, defendendo a radicalização, por exemplo, da defesa ambiental, da liberdade sexual. Novos símbolos e novas visões foram incorporados. A teoria anarquista do século XIX tornava-se uma consulta, uma leitura de base, enquanto esse mesmo anarquismo ia modelando-se, transformando-se, adaptando-se ao contemporâneo e às novas formas de comunicação.

O anarquismo ganhou espaço nas universidades, grupos de estudos foram criados para o estudo teórico, mas a prática continuou modesta. Em quase sessenta anos de história no Brasil (após 1920 até finais da década de 1970), o anarquismo encontrava-se ainda em estado letárgico. Se comparado com o socialismo e as publicações anticomunistas, poucos textos,, livros, movimentações sindicais, artísticas, etc., além de poucos nomes, surgiram: Edgar Rodrigues, José Oiticica e Maria Lacerda de Moura (para citar alguns) foram responsáveis pela maioria dos escritos e livros sobre anarquismo.

A educação política do anarquismo depende de uma união entre a prática e a teoria. Se não é possível o acesso aos livros já publicados, são desenvolvidas brochuras e rascunhos. O anarquismo reinventa-se na construção coletiva, não é dependente e nem se limita pela materialidade do livro. Mas, para atender à emergência da propriedade literária, cada vez mais, surgiram novos títulos com a temática anarquista, seja na literatura, na filosofia ou na história. A “grande biblioteca anarquista” simbolicamente é uma transferência de informações, que serve não só para conscientização individual, mas para a formação política da coletividade.

A descontinuidade e a fragmentação da leitura fazem parte do anarquismo por ser, principalmente, uma leitura ameaçadora e de difícil localização, mas isso não prejudica a totalidade teórica dos escritos. Existe uma satisfação moral na união da prática com a teoria. O que foi negligenciado ou ocultado na teoria, pode ser muito bem vivido na prática, na convivência e na ação. O livro só detém a completa efetividade do anarquismo se o indivíduo conduzir a leitura aliada à prática. Em alguns casos, o livro resume-se a uma transmissão da prática, uma forma facilitada de disponibilizar as experiências individuais ou coletivas.

Apesar de a materialidade do anarquismo não ser exclusiva ao livro, é preciso, portanto, transmitir as ideias políticas de formas mais práticas. A escrita é a mais eficaz nesse processo, devido às distâncias. Para isso, não só no Brasil, mas em todo o mundo, foram criadas editoras ou as já existentes passaram a produzir conteúdo libertário, devido, em muitos casos, às demandas coletivas de cada lugar. E foi para atender a essas demandas que a leitura sobre anarquismo se expandiu, em resposta também ao fácil acesso na internet de textos, biografias e compilados sobre anarquismo. No Brasil, editoras conhecidas como Achiamé, Rizoma, Biblioteca Terra Livre e Hedra, dentre outras, se dedicaram a essa tarefa.

Aproveitando a nova demanda pela escrita anarquista, tais editoras adotaram formatos que permitiam a compilação das ideias dos grandes nomes do anarquismo. Segundo Genette: “O aspecto mais global da realização de um livro – e, portanto, da materialização de um teto para uso do público – é, sem dúvida, a escolha de seu formato” (1987, p. 22). Na maioria das publicações sobre anarquismo, o que predomina é o formato “livro de bolso”, denotando um caráter mais popular e acessível. O anarquismo é direta ou indiretamente censurado, não só moralmente, mas também politicamente, seja pelo Estado ou pelo senso comum. Tendo isso em vista, seus livros e textos são divulgados em compilações e traduzidos em formatos minimalistas, condensados, quase uma referência à panfletagem, com capas tímidas, mas que chamam atenção para o possível conteúdo. Com uma fonte maior que os demais livros, compactos, de leitura objetiva e com um público alvo não muito distante dos objetivos das antigas coleções de bolso: os universitários. Trata-se de uma forma de adequar os bolsos à importância de grandes pilares filosóficos ou clássicos da literatura.

[…] A ‘edição de bolso’ – transformou-se num instrumento de “cultura”, de constituição e, naturalmente, de difusão, de um acervo relativamente permanente de obras ipso facto consagradas como “clássicas”. (GENETTE,1987, p. 25)

O anarquismo não acompanhou a massiva produção literária de outros seguimentos da esquerda ao longo dos citados sessenta anos; o esfriamento dessa produção pode ser atribuído não só à repressão do Estado, à expulsão de militantes descendentes de imigrantes e à antipatia moral do senso comum, mas também à diáspora dos militantes anarquistas para os recém formados partidos comunistas, frente ao sucesso da Revolução Russa. O anarquismo, ao longo desse período, não ficou inerte, mas perdeu grande parte da capacidade de produção literária e também se manteve preso às mesmas análises e abordagens, saudoso das experiências sindicais do inicio do século XX, negligenciando outras experiências e outros campos, esquecendo da sua simpatia com aquelas camadas sociais que os socialistas não “desejam” por não fazerem parte da vanguarda proletária. A Revolução Russa trouxe nova vitalidade editorial ao Brasil, elas empreenderam grandes esforços e financiamentos para resgatar a literatura de esquerda no país com a publicação de livros de Marx e grandes expoentes do socialismo europeu. Modesta no inicio, essas editoras publicariam livros que logo seriam absorvidos pela militância, o que foi, gradativamente, influenciando na qualidade e na vastidão de títulos. O sucesso da Revolução proporcionou um avanço editorial considerável do socialismo no Brasil e no mundo, ultrapassa não só as organizações anarquistas no seu protagonismo no seio dos movimentos operários, mas a predominância de textos e editoras libertárias. De lados opostos, e com forças e influencias antagônicas, tanto o socialismo com seu rápido crescimento e o Estado com seu aparato repressivo, contribuíram para um silêncio editorial do anarquismo e, consequentemente, sua constante interrupção, seja na organização e ação, até na produção e divulgação de textos. “Em 1921, após o “comunismo de guerra”, a produção de livros conhece um aumento da ordem de 60% e, embora a estrutura seja centralizada, atual nesse campo mais de duas mil organizações sociais de caráter partidário e/ou cooperativo” (MAUÉS. 2013, p. 15)

Em finais dos anos 70 e inicio dos anos 80, o anarquismo retomou suas publicações com o efervescente movimento punk. Foi nesse período que se formaram jornais, periódicos e a produção editorial retomou sua força. Novas editoras surgiram e as já existentes dedicaram coleções, a principio modestas – principalmente pelo momento político do país, com o movimento das “diretas já!” e uma nova constituição –, ao anarquismo. É na presença do anarquismo na produção editorial brasileira contemporânea que esta pesquisa se concentrará, especialmente na produção da Editora Hedra. Será tomada como principal fonte a coleção “Anarcos de Bolso”, que seleciona títulos e autores consagrados do anarquismo.

Essa pesquisa se sustentará, do ponto de vista teórico metodológico, em estudos de Roger Chartier, “A mão do autor e a mente do editor”, a propósito da história do livro e da leitura e no trabalho de Gérard Genette, “Paratextos editoriais”. Procura-se esclarecer o lugar do anarquismo na história editorial do Brasil – com suporte na pesquisa de Flamarion Maués, “Livros contra a ditadura. Editoras de oposição no Brasil, 1974 – 1984” e Maria Midori Deaecto e Jean – Yves Mollier, “Edição e Revolução” – como é representado, qual o interesse da editora em produzir um seguimento dedicado ao anarquismo, quais títulos foram usados e o porquê.

2 ELEMENTOS EDITORIAIS

                    A Hedra surgiu como editora no cenário brasileiro em 1999 e publicou, desde então, um vasto número de obras que vão desde a literatura clássica a livros infanto-juvenis, temas contemporâneos e críticas literárias, literatura de cordel e cultura pop, para citar alguns dos interesses. Mas é sobre sua coleção destinada ao anarquismo, denominada “Anarcos de Bolso”, que se concentrará essa pesquisa. Composta por doze livros, representando os “clássicos” da literatura anarquista, com uma seleção de autores e temas que compõem o pensamento socialista libertário, a Série Estudos Libertários:

 

… reúne obras, em sua maioria inéditas em língua portuguesa, escritas pelos expoentes das correntes libertárias. Importante base teórica para a interpretação das grandes lutas sociais travadas desde a segunda metade do século XIX, explicitam a evolução da ideia e da experimentação libertárias nos campos político, social, e econômico, à luz dos princípios federalista e autogestionário. (HEDRA, 1999, p. 4)

 

 

A Hedra reúne autores e uma temática característica do socialismo libertário de finais do século XIX e início do XX, em que a crítica ao Estado, à busca pela liberdade, a solidariedade, a organização operária e a revolução social são os temas mais recorrentes abordados pelos principais nomes da época: Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Emma Goldman, Élisée Reclus e Max Nettlau, Rudolf Rocker, Maurice Cranston Em suas capas, a Editora representa o anarquismo com imagens que destacam a organização e a ação, dois pontos fundamentais que norteiam a filosofia do movimento. A ideia em trazer novos escritos anarquistas para o Brasil permite uma redução no silenciamento editorial que o anarquismo sofre no país (e também no mundo), e mostra o interesse em expandir a literatura libertária em um formato que seja acessível ao público jovem e universitário, alvo da editora.

O objetivo da Hedra com essas escolhas consiste na difusão de um pensamento que, no Brasil, já teve grande expressão e foi a principal linha de frente de oposição ao governo, o anarcossindicalismo – ou sindicalismo revolucionário – no inicio do século XX. Para definir e delimitar seu espaço, a editora seleciona, para construir as introduções e prefácios dos livros, simpatizantes e expoentes do anarquismo brasileiro, nomes que resumem o caráter socialista libertário adotado pela editora para representar a coleção: Alexandre Samis, Carlos Romani, Michel Suaréz, Alex Buzeli Bonomo e Eduardo Colombo; todos eles com forte ligação ao anarquismo, seja pela atividade nas organizações, ou por suas produções intelectuais ligadas ao movimento. A Editora produz uma coleção, aproveitando-se de ensaios e textos fragmentados, para construir uma historiografia do anarquismo, utilizando-se de temáticas que resumem os princípios do movimento, o que permite uma delimitação de um projeto ideológico que determina uma afinidade com o Socialismo Libertário. Essa delimitação ignora outros temas defendidos pelo anarquismo devido ao recorte temporal dado à coleção e as intenções e características dadas pela Editora. Tanto o individualismo, vagamente mencionado em “O indivíduo, a sociedade e o Estado” de Emma Goldman, quanto o primitivismo são ignorados, assim como, por exemplo, o municipalismo libertário,

As introduções, na maioria dos títulos, escritas por autores brasileiros simpatizantes do anarquismo, reúnem informações biografias e destacam os principais temas dos respectivos livros, analisando também a época em que cada autor está inserido, suas contradições e principais ideias. A editora cria na introdução um espaço para as reflexões, detalhadas e minuciosamente discutidas e enumeradas, e a biografia dos autores, sempre relacionando sua vida com o lugar, as agitações políticas e o contexto do período. Em geral é dividida por capítulos, cada um discutindo algumas das ideias expressas nos textos.

Apesar de reunir os principais nomes do anarquismo de finais do século XIX ao início do século XX, a coleção não representa, em sua totalidade, as ideias principais dessas obras, mas apresenta o projeto ideológico da Editora. Não sendo a escolha dos autores e das temáticas acidental, é a Hedra a responsável pela ressignificação destas obras. A partir do momento que delimita seu público a estudantes e universitários, ela rompe com o universalismo presente nos principais textos dos autores. Logo, as ideias representadas nessa coleção são materializações do conjunto das obras com os elementos paratextuais acrescentados pela editora.

Nesse contexto, todas as obras, sem as introduções, não passariam de textos soltos e sem totalidade – mas conservariam seu caráter universalista – que serviriam apenas como expressão de ideias e não teriam o caráter informativo e didático que a coleção possui, já que são os paratextos que dão sentido aos fragmentos textuais reunidos pela editora. Mas as introduções, isoladas dos seus relacionados textos, possuem uma historicidade que acompanha o desenvolvimento do anarquismo ao longo das décadas finais do século XIX e início do XX e serve, também, como catálogo biográfico de seus autores. A coleção não explora a totalidade das obras, seleciona aquelas que fortalecem seu programa, na tentativa de traçar um processo evolutivo do anarquismo, em que o individualismo – vertente excluída do projeto da editora – precisa ser superado em favor de uma identidade socialista.

 

A introdução (Einleitung) tem uma ligação mais sistemática, menos histórica, menos circunstancial com a lógica do livro. É única, trata de problemas arquitetônicos, gerais e essenciais, apresenta o conceito geral na sua diversidade e sua autodiferenciação. Os prefácios, ao contrário, multiplicam-se de edição para edição e levam em conta uma historicidade mais empírica; respondem a uma necessidade de circunstância…” (GENETTE, 2009, p. 145)

                    O autor, na coleção da Hedra, não participa da confecção do livro. São os objetivos editoriais que demarcam suas fronteiras e seu significado. O texto é dependente dos elementos paratextuais, pois concede as representações necessárias para o processo de identidade com o anarquismo. Ou seja, textos como os de Bakunin, por exemplo, são representações editoriais cujos significados pertencem à editora, utiliza-se a identidade do autor como correspondência entre o editor e o leitor. Sozinha, a editora não possui as características desejadas e necessárias para representar a ideia anarquista. É preciso haver um terceiro componente que, apesar de ser o desenvolvedor da mensagem, não passa de um coadjuvante na comunicação entre a editora e seu público alvo. Não é a totalidade de sua ideia o importante para o desenvolvimento do livro, mas as seleções do editor que farão daquela obra o que ela é.

A Hedra é uma editora de oposição no momento que confecciona uma coleção voltada ao anarquismo, porém não engajada, pois não explicita em seu programa seus objetivos e sua participação na atuação política do anarquismo. Seria preciso delimitar seu espaço na História editorial do livro anarquista com uma participação direta na organização e no desenvolvimento ideológico. Contudo, contribui significativamente com a produção literária anarquista, auxilia, nesse sentido, a expansão e divulgação da ideia libertária, prejudicada pela censura, seja ela através da clara interferência nos escritos, organização e divulgação, ou na oposição ideológica, realizada através do projeto educacional, midiático, moral, político ou cultural.

Editora de oposição não é necessariamente sinônimo de editora de esquerda […] os referenciais básicos para se saber se uma editora pode ser chamada de editora de oposição são o perfil político e ideológico da editora, determinado pelas simpatias e filiações políticas de seus proprietários e/ou editores, e o seu catálogo de seus livros publicados. (MAUÉS, 2013, p.27)

Dentre todas as introduções produzidas pela Hedra, a única que destaca o confinamento intelectual sofrido pelo anarquismo está no livro escrito por Emma Goldman, “O individuo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios”, cujo autor, Carlo Romani destaca o próprio confinamento sofrido pela autora nos meios intelectuais de seu tempo e nos próprios círculos anarquistas, por ela não ter seguido uma trajetória formal de educação e não ter alcançado a universidade.

Antes de tudo – me parece -, pelo fato de ela ser mulher, com a agravante, ainda, de ser anarquista. Substantivo e adjetivo que durante muitos anos se completariam como garantia certa para o confinamento intelectual e o abandono editorial a que ficaram relegadas, seja pelo pensamento dominante, seja até por alguns dos próprios companheiros de luta.

Penso que o fato de ela não ter seguido uma trajetória formal de educação e não ter alcançado a universidade acabou por se tornar um dos motivos de certo desprezo pela sua produção quando comparada à de outros anarquistas da mesma época. (Romani, 2011, p. 10)

Seus escritos sobre a emancipação feminina e seus artigos em defesa das individualidades humanas chegam ao Brasil somente na década de 1960, difundidos durante a passagem de Julian Beck, diretor e ator de teatro nova yorkino, ligado aos movimentos de vanguarda, foi preso juntamente com sua mulher Judith Malina no Brasil, e do grupo Theather, companhia de teatro dos Estados Unidos, adepta da desobediência civil que participou e organizou diversas manifestações contra a guerra do Vietnã, pelo país.

Os paratextos da editora localizam o leitor nos principais pontos de discussão do anarquismo. Antes da introdução e do sumário, logo após as informações editoriais, encontra-se uma seção que serve como bússola dos principais elementos presentes no livro: biografias do autor, tradutor, do responsável pela introdução, além de contar com uma breve sinopse do texto e uma descrição da série “Escritos Libertários”, produzida pela editora.

A princípio, os textos anarquistas não foram produzidos com a intenção de se tornarem livros. Foram desenvolvidos com o objetivo de, através dos discursos autorais, incentivar a organização e difundir uma ideia antiautoritária, libertadora e, em contraposição à iniciativa de instituições e sistemas que apoiam o Estado, moralizadora que, através da conscientização de que os indivíduos podem e devem ser donos do seu próprio destino, espera alcançar a revolução social. Após esse impulso inicial, surgiram autores que buscaram na natureza e nos discursos científicos o apoio para teorias que comprovassem a necessidade do homem de organizar-se e, também, que a autoridade não é um fenômeno natural, mas abstrato, criado e desenvolvido por instituições e classes que possuem interesses dominantes.

O anarquista russo Kropotkin, por exemplo, em sua experiência na Sibéria, produziu textos que contestaram a teoria evolutiva de Darwin, segundo a qual a competição é fator principal para a evolução. Para o russo, é o apoio mútuo o principal fator responsável pelo sucesso de diversas espécies, pensamento que aplicou também às organizações humanas, defendendo a ideia de que somente a solidariedade e a organização sem autoridade são o caminho para a revolução social.

Os textos anarquistas são, em diversos casos, panfletos políticos que foram transformados em livros, excetuando aqueles que têm como objetivo validar o pensamento libertário com fundamentos científicos e filosóficos. São textos cujo objetivo é transmitir uma mensagem rápida e incendiária, que conquiste no impulso transformador dos indivíduos e sua vontade transformadora. Geralmente expressos em ensaios ou textos curtos, que condensam uma ideia e a resumem de forma objetiva e de fácil acesso, foi dessa maneira que o anarquismo conseguiu expandir suas fronteiras em finais do século XIX.

A Hedra buscou nos principais ensaios expressar ideias anarquistas da época. Organizou, através de cada autor, uma seleção de temas que segmentassem as principais abordagens ideológicas do anarquismo. São os autores de cada livro, acompanhado de seus paratextos, que representam os temas abordados. Esse tipo de abordagem facilita, para novos leitores e entusiastas do anarquismo, uma identidade na associação do tema com o autor. Mas, em certa medida, limita aquele autor no espaço temático abordado.

A forma textual, sempre irredutivelmente singular, era a única, mas poderosa, justificativa para a apropriação individual das ideias comuns transmitidas a outros por livros impressos. Assim, paradoxalmente, visando conceituar textos como propriedade individual, eles precisam ser conceitualmente dissociados de qualquer corporificação material particular e localizados na mente – ou na mão – do autor. (CHARTIER, Roger. 2014 p. 142)

                    Os intertítulos da coleção não são segmentações de um bloco textual único, pelo contrário, são conjuntos de ensaios que servem como capítulos, transformando diversos textos em um só. Alguns livros são e, recebem, o nome de seu único ensaio, a exemplo de Rocker, “Os sovietes traídos pelos bolcheviques”; de Bakunin, “Deus e o Estado”; Maurice Cranston, “Diálogo imaginário entre Marx e Bakunin”, especialmente em se tratando de Bakunin, que escrevia seus pensamentos em cartas e as assinava usando pseudônimos. Após sua morte, Élisée e Max Nettlau, para citar alguns, reuniram seus escritos e publicaram como livros. Essa foi a maneira de Bakunin burlar a repressão e censura aos seus textos e, também, por passar grande parte de sua vida militante preso, viu nessa forma de escrita uma oportunidade de comunicação com companheiros espalhados pela Europa. “A presença de intertítulos é possível, mas não obrigatória, em obras unitárias divididas em partes, capítulos etc., e nas coletâneas.” (GENETTE, 2009, p. 261)

A censura teve um impacto grande nas publicações dos textos anarquistas, mas não só isso, teve grande influencia em como o anarquismo era escrito. Já que era necessário burlar a censura e a perseguição aos militantes, os textos anarquistas precisavam ser curtos, objetivos e de fácil difusão, eram feitos, em sua maioria, em formas de mensagem ou cartas, publicações em revistas e jornais clandestinos, isso transformou a forma como o anarquismo era difundido e, principalmente, como era lido.

Nas releituras e novas edições, o texto anarquista ganha uma nova dimensão, não mais é necessário burlar a censura, era preciso transformar aquele escrito incendiário e moralizante em uma obra cientifica e filosófica. Para isso, um imenso empenho editorial fora criado dentro dos sindicatos e principais organizações anarquistas espalhados pela Europa, Estados Unidos e Brasil, força que só diminuiu com a expansão do socialismo após a Revolução Russa.

Acompanhando essa nova reedição do anarquismo, a Hedra apresenta o movimento como corrente filosófica, projeto político, agente moralizante e catalisador de forças transformadoras, produto da ação militante e, sobre sua História, produz um livro que se propõe como reunião historiográfica. A editora, em seus intertítulos, mostra a necessidade de representar a identidade anarquista através dos escritos autorais. Para determinar essa identidade, surgem títulos que destacam o “Ser” anarquista, “o que é anarquia?”, “onde o anarquismo atua?”, “como é sua organização?” e as propostas de uma nova sociedade.

Os intertítulos atuam como apêndice para o texto principal que nomeia o livro, uma espécie de suporte textual que explica e aprofunda o tema. Em “Escritos Revolucionários”, de Malatesta, a editora utiliza o autor para representar o anarcossindicalismo. Em 19 ensaios resume a filosofia, discutindo desde a organização sindicalista, seus objetivos, programa, o processo até a anarquia e a diferença com o socialismo. A Hedra, em todos os livros, faz com que cada autor seja representado por uma corrente filosófica diferente. Especificamente no livro de Emma Goldman, representa uma possível evolução, parte da ideia de que o individualismo seja, de certa forma, “inferior” ao socialismo libertário, inicia com o ensaio que dá título ao livro, “O individuo, a sociedade e o Estado”, em que o individualismo está no cerne da abordagem. Goldman, inspirada pela ideia de liberdade estadunidense, pensa o anarquismo como um conjunto de indivíduos desejosos da liberdade que, através da organização voluntária, educação e conscientização, buscam a revolução. É, também, uma forte opositora do militarismo e patriotismo, além de ser a única a fazer uma critica mais aprofundada da Revolução Russa.

A fragmentação textual recorrente no anarquismo é usada, pela editora, para segmentar os principais temas e atribuí-los aos autores selecionados. Essa fragmentação nasce como forma de combate à censura, devido ao texto anarquista, a priori, servir para objetivos específicos de difusão nos meios operários. No Brasil, excetuando os momentos de fechamento político, a censura ao anarquismo, de forma geral, parte do antagonismo ideológico ao Estado. É um conjunto de ações que usam as instituições para perpetuar um confinamento editorial à ideologia. Além de ter uma direta influência na escrita, a partir da censura do Estado, e extradições dos principais militantes anarquistas naquele período, é também uma ação moral, em que a educação tem um papel decisivo.

Apesar de todos os esforços do anarquismo brasileiro em usar o sindicato para expandir culturalmente suas ideias, a educação estatal tem papel decisivo na doutrinação infantil, além dos esforços do Estado em produzir uma ideia de modernização e progresso o que, em certa medida, cativa e recebe apoio das classes dominantes. Nesse momento, a fragmentação textual no anarquismo pode ser percebida nos principais jornais e periódicos desenvolvidos no seio dos sindicatos. Essa estratégia, por um lado, faz avançar a difusão do pensamento libertário, permite que mais indivíduos produzam textos que influenciem a organização e ação operária. Contudo, principalmente após o fortalecimento do socialismo no Brasil, com a Revolução Russa, e a necessidade de uma produção editorial mais formal, o anarquismo sofre um impacto na produção textual que duraria, em certa medida, aproximadamente 60 anos. Há ainda produção de livros sobre anarquismo, principalmente de anarquistas brasileiros, mas, em comparação aos livros socialistas, as publicações e surgimento de editoras dedicadas ao anarquismo caem drasticamente. As organizações operárias, sindicatos e centros culturais, que antes publicavam um grande número de exemplares com a temática anarquista, não conseguem competir com a explosão editorial socialista, de um lado porque, dos militantes anarquistas do início do século XX, entre extraditados e os que migraram para formar o primeiro partido comunista brasileiro, poucos se mantiveram nessas organizações, diminuindo consideravelmente as publicações. Após isso, a maioria dos livros sobre anarquismo se confundiam aos escritos socialistas, difundidos em um bloco opositor aos regimes ditatoriais no Brasil.

Tornou-se comum, a partir dessa fragmentação textual, associar cada tema a um determinado autor, pelo interesse em desenvolver determinada temática ou credibilizá-la, associando-a com uma figura de expressão naquela área. Em sua coleção, a Hedra elabora essa dinâmica de forma que o leitor associe uma corrente a um autor específico. Atribui-se um “signo exterior e visível do gênio interior e invisível do escritor para todos aqueles que não eram capazes de visitá-lo e conhecê-lo” (CHARTIER, 2014, p.142).

Aparentemente, isso parece favorecer a filosofia anarquista no que confere identidade à figura autoral. Contudo – agora não mais discutindo seu caráter teórico, mas sua prática – o anarquismo não se define em centralizações; apesar de surgirem ao longo de sua história nomes que possam representar uma ou outra vertente, sua identidade não está limitada às representações e identidades que possam atribuir à anarquia. Foi papel do individualismo romper com qualquer identidade associada a uma vertente anarquista. Max Stirner, William Godwin e, por um tempo, Emma Goldman destacaram sempre a associação voluntária e, muitas vezes, efêmera dentro das organizações anarquistas.

O anarquismo brasileiro raramente é usado em forma de ensaios dissociados do pleno sentido de seu texto original. Para as edições internacionais, ao contrário da nacional, o anarquismo é tratado de forma fragmentada e, por parte das editoras, existe uma necessidade de reunião desses ensaios em um formato que materializa uma ou mais vertentes anarquistas. Mesmo o anarquismo brasileiro sendo censurado e, na sua maioria, publicado em jornais, periódicos e revistas, nunca publicado separado, em um grupo de ensaios. O anarquismo brasileiro não sofreu o fetichismo que o internacional possui em demasia porque sofreu com o confinamento intelectual; em parte pelo Estado e suas instituições e, inconscientemente, devido a experiência na Rússia, do socialismo.

Como consequência desse confinamento intelectual, o anarquismo brasileiro não possui rostos conhecidos. Assim como o Primeiro de Maio foi adulterado como celebração, o anarquismo no país é uma lembrança distante na memória operária. Edgar Rodrigues e José Oiticica, principais autores anarquistas brasileiros, responsáveis por grandes publicações sobre socialismo libertário e anarcossindicalismo, são ocasionalmente citados e lembrados em textos que abordam esse período inicial de movimentação operária. O anarquismo da Primeira República é lembrado em um sentido ancestral, parte de uma história que, em certa medida, está hierarquicamente abaixo do sindicalismo partidário, praticado pelos militantes fundadores do Partido Comunista, que atuaram após sua fundação e foram responsáveis pela atuação e organização dos trabalhadores após 1921. Esse tipo de noção é criada com a expansão do socialismo no Brasil e uma relação moral causada, principalmente, pela rivalidade entre os dois movimentos.

A Hedra contribui com as representações, significações e identidades anarquistas no Brasil desenvolvendo uma coleção que apresenta o anarquismo para seu público de forma objetiva e didática, destacando as principais ideias recorrentes nos autores “clássicos”. É ela que, na escolha dos ensaios, dos autores e das temáticas, apresenta o anarquismo em um molde predeterminado pelas suas orientações ideológicas, mesmo que essas motivações não sejam militantes ou aliadas aos princípios libertários. Vale lembrar que a coleção, antes de ser um combate – consciente ou inconsciente – ao confinamento editorial sofrido pelo anarquismo, é uma mercadoria que precisa ser comercializada, precisando atingir exigências comerciais, contudo, necessitando apenas corresponder ao programa ideológico da editora.

… o editor tem papel central pois atua como “coordenador de todas as possíveis seleções que levam um texto a se transformar um livro, e tal livro em mercadoria intelectual, e esta mercadoria intelectual em objetivo difundido, recebido e lido. (MAUÉS, 2013, p.16)

As escolhas de textos não foram acidentais. A Hedra elaborou sua coleção no intuito de difundir Socialismo Libertário e transforma os autores em signos que representam e dão significado à coleção. Nos doze livros que compõem a coleção, são reunidos os principais ensaios que, didática e objetivamente, constroem para o leitor o que é, como é organizado, quais os objetivos e o que defende o anarquismo. Dentre todos os elementos que compõem a coleção, o mais importante é a figura do autor, pois ele oficializa e credencia as representações dos livros; materializa uma reunião ampla e diversificada de ensaios e os transforma em livro que, finalmente, representam o anarquismo.

 Construção Temática da Coleção    

3.1 ASPECTOS GERAIS DA COLEÇÃO

O anarquismo nasceu no século XIX como ideologia cujo objetivo principal é a revolução social. Para alcançá-la, constrói práticas e princípios que priorizam a organização – sendo ela ampla e que pode ir da luta individual ao socialismo -, ação direta (sabotagem, greve geral e, como última consequência, a luta armada) e o combate às estruturas estatais e às instituições que apoiam as opressões e desigualdades. Tanto na prática, quanto na teoria, o anarquismo possui amplas frentes de ação: individualismo, coletivismo, socialismo, primitivismo, sindicalismo, feminismo e outras que, apesar da diferença nos meios e nos princípios adotados, tem como objetivo principal a revolução social.

A Hedra, dentro dos doze livros que completam a coleção “Anarcos de Bolso”, expressa princípios comuns ao Socialismo libertário, suas características, principais expoentes, suas práticas e ideias. Organiza sua disposição temática representado-as através de cada autor. Os ensaios e intertítulos, organizados como capítulos, buscam condensar as principais ideias, seguindo a lógica de representação de temas e por autor. Essa configuração permite a associação de ideias com os principais nomes do cenário anarquista, resultando numa construção de identidade em torno da figura do escritor. Dentre os principais temas abordados, os mais significativos são: identidade, liberdade, anticlericalismo, antipatriotismo e militarismo, organização e revolução social. São geralmente acompanhadas pela significância de cada autor, ou seja, as representações temáticas de um resumo biográfico, reúne também a amplitude temática da militância brasileira. O anarquismo brasileiro, nos escritos, nas organizações e nas práticas, abordava esses temas como princípios difusores do anarquismo. Os temas são uma reunião teórica dos principais autores libertários e a prática da militância brasileira nas primeiras décadas do século XX.   A editora constrói, através dessas ideias, sua noção de Socialismo Libertário, o que entende como importante parte que compõe a filosofia libertária em finais do século XIX e início do século XX, períodos que são definidos pela amplitude do sindicalismo revolucionário, ou anarcossindicalismo, do comunismo libertário e pela esperança da revolução como ação libertadora.

3.2 IDENTIDADE

Os textos têm como primeiro objetivo a construção da identidade, para isso, escolhem-se ensaios específicos que reúnam a ideia do Ser anarquista e o que significa essa condição. Nesse segmento, a editora escolhe, dentre os autores abordados em toda coleção, três nomes Élisée Reclus, Kropoktin e Malatesta que irão representar as condições do Ser libertário. Não há divisão explícita – apesar dos intertítulos darem uma pequena noção do tema abordado no texto – desses temas. É no direcionamento dos ensaios que se percebem as intenções de construção da identidade representadas pela editora.

Na construção dessa identidade libertária, os ensaios constantemente referem-se ao leitor sendo ele também anarquista, como se aquele texto fosse um diálogo entre indivíduos que possuem as mesmas convicções. O que é comum em textos sobre o anarquismo, como que, de alguma forma, o resultado daquelas conclusões fosse uma reunião dos aprendizados e das contribuições da militância ao redor do mundo.  Isso fornece grande influencia na criação de uma identidade anárquica pois, a comunicação autor/leitor, fornece um senso de participação, uma integração e solidariedade entre as partes. O anarquismo oitocentista possui um caráter agregador, característica que o contemporâneo falta. Essa integração está relacionada com a necessidade de criar uma identidade universalista, ou de uma organização que supere as fronteiras, que reúna todos os explorados em uma classe comum que coopere entre si, portanto, a estreita comunicação e a ideia do desenvolvimento comum de uma teoria, cria uma noção unitária que transcende barreiras políticas criadas pelos Estados Nações. Para esse fim, os texto estão carregados de um sentido moralizante, em que o autor, apesar de considerar o leitor um anarquista, decide instruí-lo no que é ser um anarquista.

[…] Pois somos anarquistas, isto é, homens que querem conservar a plena responsabilidade de seus atos, que agem em virtude de seus direitos e de seus deveres pessoais, que dão a um ser seu desenvolvimento natural, que não têm quem quer que seja por senhor e não são senhores de ninguém. (RECLUS, 2016, p. 45)

                    Na construção da identidade, os textos também definem, com maior especificidade, os terrenos da luta libertária, seus inimigos, como deverá ser conduzida a luta e as armas necessárias para alcançar a revolução social. Kropotkin apresenta os inimigos do anarquismo em seu ensaio “O princípio anarquista” – “os anarquistas e, contra eles, todos os outros partidos, qualquer que seja sua etiqueta” (2016, p. 36) – em que contextualiza a luta e a conquista dos principais espaços de movimentação operária, define, também, o anarquismo como único meio para liberdade:

contra todos os partidos, os anarquistas são os únicos a defender por inteiro o principio da liberdade. Todos os outro gabam-se de tornar a humanidade feliz mudando ou suavizando a forma dos açoites.
Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, salário e fome nunca foram, e jamais serão, um elemento de progresso; e se já há progresso sob um regime que reconhece esses instrumentos de coerção, esse progresso é conquistado contra esses instrumentos, e não por eles. (Kropotkin, 2012, p. 36)

Malatesta aborda a identidade ligando-a à capacidade e intenção de organização de cada indivíduo. Está na associação e participação a grupos de ação a verdadeira forma de identificar o Ser libertário de um indivíduo. É através da organização que se formará a identidade e, consequentemente, os demais princípios, além de conter o gene responsável pela revolução social: “…se não se pode realizar de imediato a anarquia, não é carência de teoria, mas devido ao fato de que todos não são anarquistas, e os anarquistas ainda não têm força para conquistar sua liberdade e fazê-la respeitar. (MALATESTA, 2011, p. 131).

3.2 LIBERDADE

                   A editora aborda a liberdade no anarquismo através das ideias de Bakunin. Isso não implica a ausência desse tema nos demais títulos, entretanto, é através desse autor que se condensa o maior esforço em representar uma noção específica de liberdade, distante da ideia, por exemplo, presente nos textos de Emma Goldman. A ideia bakuniniana de liberdade é um antagonismo entre o natural e a autoridade divina.

A liberdade parte do reconhecimento das leis naturais, sendo a rebeldia contra essas leis impossível. A ausência da liberdade, segundo o autor, é consequência do desconhecimento dessas leis, e pelo não reconhecimento da ciência que poderia servir como educação para as massas. “Em relação às leis naturais, só há, para o homem, uma única liberdade possível: reconhecê-las e aplicá-las cada vez mais, conforme o objetivo de emancipação ou de humanização coletiva e individual que ele persegue” (BAKUNIN, 2014, p. 60). E continua: “A liberdade do homem consiste unicamente nisso: ele obedece às leis naturais porque ele próprio as reconhece como tais, não porque elas lhe foram impostas exteriormente, por uma vontade estranha, divina ou humana, coletiva ou individual qualquer”. (BAKUNIN, 2014, p. 61).

                   Para Bakunin, a liberdade não vem como proposta solitária e utópica, mas como antagonismo à autoridade, Igreja, Estado e toda forma de poder através de sistemas que escravizem o homem. A rebeldia é fruto desse antagonismo e o que gera todo o desenvolvimento que concede a liberdade a todos os indivíduos. Deus, autoridade máxima no cristianismo, é a negação da humanidade: “a ideia de Deus implica a abdicação da razão e da justiça humana; ela é a negação mais decisiva da liberdade humana e resulta necessariamente na escravidão dos homens, tanto na teoria quando na prática” (BAKUNIN, 2014, p. 50).

É através do conflito com a religião e toda e qualquer ideia que limite a humanidade, que o homem constrói sua liberdade. É a partir desse antagonismo que surge a rebeldia, fruto do reconhecimento e rejeição de toda autoridade, exceto a natural. Bakunin tem, diferente de outros autores anarquistas e, também, liberais e socialistas, uma noção de liberdade distinta. Ele concebe a liberdade como condição coletiva, ninguém pode ser livre sem que todos o sejam: “… a liberdade e a prosperidade coletivas só existem sob a condição de apresentar a soma das liberdades e prosperidades individuais” (2014, p. 95).

Apesar da necessidade antagônica, a liberdade idealizada por Bakunin ainda pode ser entendida como fenômeno natural, dependente das ações de rebeldia humanas, mas inerente à humanidade. Consequentemente, por mais duradouras que as explorações sejam, em determinado momento, a rebeldia humana encontrará o caminho para destruí-la, iniciando um movimento libertador.

3.3 ANTICLERICALISMO

Além da crítica ao Estado, a filosofia anarquista carrega um sentimento fortemente anticlerical, presente com maior ênfase e crítica nos textos de Bakunin e Reclus. A religião, Deus e a Igreja, são vistos como um atraso para humanidade, contaminam o espírito humano, roubam-lhe iniciativa e criatividade. Bakunin associa a escravidão humana à existência de Deus, afirmando: “Se Deus existe, o homem é escravo; ora, o homem pode, deve ser livre, portanto, Deus não existe” (2014, p. 55). A simples existência de Deus é condição que limita a humanidade, para isso, segundo Bakunin: “se Deus existisse, só haveria para ele um único meio de servir a humanidade; seria o de cessar de existir” (2014, p. 58). Reclus, ao contrário de Bakunin, ataca não só a metafísica e as condições etéreas da religião, mas seu próprio corpo institucional. A crítica anarquista à Igreja Católica está ligada à posição privilegiada que, não só da instituição, mas dos indivíduos que a compõem e que enriquecem a custa de um povo bestializado por eles.

Enquanto os padres, monges e todos os detentores de um poder pseudodivino estiverem constituídos como liga de dominação, é preciso combatê-los sem trégua, com toda energia de sua vontade e com todos os recursos de sua inteligência e força […] essa luta encarniçada não deve impedir de maneira alguma que conservemos o respeito pessoal e toda simpatia humana por cada individuo cristão, budista ou fetichista desde que sua força de ataque e de dominação tenha sido vencida. (RECLUS, 2016, p. 53)

Não é, portanto, como apresentado por Reclus em seu texto, a luta contra religião e a Igreja destinada aos indivíduos, mas sim às instituições religiosas. A crítica anticlerical tem como objetivo o combate à noção metafísica usada pela Igreja e por seus líderes para dominar as massas. Há um processo de conscientização, através de uma educação racional e crítica, dos indivíduos que são manipulados pelas superstições criadas por essas instituições. Diferente de Bakunin, Reclus defende que a educação é a estratégia ideal para construir o caminho para liberdade, pois só assim é possível conscientizar os indivíduos e restaurar seus impulsos criadores e rebeldes.

[…]Pela propaganda de cada dia, retiremos dos padres as crianças que se lhes dão a batizar, os meninos e as meninas que eles “confirmam na fé” pela ingestão de uma hóstia, os jovens que eles tencionam unir, os infelizes que maculam fazendo nascer o pecado em sua alma pela confissão, os moribundos que eles aterrorizam ainda no último momento da vida. Descristianizaremos o povo! (RECLUS, 2016, p. 56)

Reclus entende a escola como um ambiente propício para o desenvolvimento crítico de cada indivíduo, um local, assim como deve ser a sociedade, “sem deus nem amo”, mas que são usados como “centros nos quais ensinam a obediência a deus e, sobretudo, a seus representantes, os mestres de todo tipo, padres e monges, reis e funcionários, símbolos e leis” (2016, p. 59).

3.5 ANTIPATRIOTISMO E MILITARISMO

O antipatriotismo e militarismo, ao contrário das outras temáticas, estão presentes nos ensaios de Emma Goldman, em parte por sua preocupação em criticar tais temas, mas também por relacionar o crescente militarismo na Alemanha, tido como causa para a Primeira Guerra Mundial, e o americano, que surge com forte sentimento patriótico e defesa de uma crescente militarização. A autora, em seus ensaios, “O patriotismo, uma ameaça à liberdade” e “A preparação militar nos conduz direto ao massacre universal”, aponta o patriotismo como “princípio que justifica a instrução dos indivíduos que cometerão massacres em massa”, responsável por apoiar o desprezo, arrogância e egoísmo, mas limita sua influência às massas, não influenciando aqueles que detêm o poder e a riqueza.

Pede-se ao povo para ser patriota e, para esse luxo, ele paga não sustentando seus ‘defensores’, mas sacrificando seus próprios filhos. O patriotismo exige uma vassalagem total à bandeira, o que implica obedecer e estar pronto a matar seu pai, sua mãe, seu irmão ou sua irmã. (GOLDMAN, 2011, p. 64)

O patriotismo ameaça a liberdade, pois, dentro de seu ideal, existe a constante criação de inimigos, externos e internos, o que prejudica na solidariedade, organização e associação dos indivíduos explorados pelo Estado. A centralização de poder cria solidariedade entre potências que compartilham sistemas tidos como democráticos, mas reprime a união universalista dos trabalhadores. Para garantir a perpetuação das ilusões criadas pelas nações, exércitos garantem a ordem interna e servem, também, como demonstração de poder entre essas mesmas potências. Unidos, patriotismo e militarismo, são responsáveis não pela manutenção da paz, ideia defendida pelas nações, mas como garantia dos interesses daqueles que detêm o poder e as riquezas.

Para permanecer vivo, o militarismo necessita constantemente de energia suplementar; eis por que ele buscará sempre um inimigo ou sem sua ausência, criará um artificialmente. Eis seus objetivos e seus métodos civilizados, é sustentado pelo Estado, protegido pelas leis, mantido pelos pais e pelos professores, glorificado pela opinião pública.  Em outros termos, a função do militarismo é matar. Ele só pode viver graças ao assassinato. (GOLDMAN, 2011,  p. 56)

O patriotismo serve como suporte para a manutenção do militarismo, ideia difundida pelo Estado através da educação e instituições que compõem a sociedade: família e igreja, por exemplo. Cultiva uma relação fraternal com o Estado, intimamente mantida através de signos que representam uma falsa liberdade e harmonia, contudo, as relações individuais entre as massas são mantidas, a fim de forçar uma competição que será motor e alimento para disputas criadas para manter grupos distantes e, assim, longe de uma solidariedade e associação.

3.6 ORGANIZAÇÃO E REVOLUÇÃO SOCIAL

O anarquismo possui numerosas formas de organização, é o critério que divide a filosofia em diversas vertentes, distintas uma das outras, mas que compartilham um mesmo objetivo: a revolução social. Esse ponto é o mais importante da coleção, pois traz, minuciosamente, a seleção de ensaios que produzem a ideia de anarquismo escolhida pela editora para representar o Socialismo Libertário. É através dos textos de Malatesta que a Editora reúne os princípios que representarão sua estratégia. Existe um imenso empenho de autores anarquistas para produzir textos que descrevam uma forma ideal de organização, como é o fator determinante para a ruptura das vertentes libertárias. A escolha de um ou outro tipo de organização determina a escolha por uma corrente específica do anarquismo. A materialização do Socialismo Libertário não é exclusiva aos textos de Malatesta. Apesar de ser uma escolha da editora, existem diversos outros expoentes do anarquismo que produziram textos que têm a organização como preocupação principal. Por ser italiano – nacionalidade de grande parte dos imigrantes –, o autor foi bastante lido nos círculos e influenciou grande parte da ação do anarquismo brasileiro.

Há um grande apelo moral e de uma “identidade verdadeira” nos escritos de Malatesta. Em seus ensaios destinados à organização, o autor se dirige especialmente aos militantes, como forma de instrução sobre a organização e, constantemente, produz um discurso crítico sobre a identidade anarquista. Defende um maior interesse por parte dos militantes na construção da organização e associação anarquistas.

Para se tornar anarquista, de modo sério, e não somente de nome, é preciso que comece a sentir a solidariedade que os une a seus camaradas, é preciso que aprenda a cooperar com os outros na defesa dos interesses comuns e que, lutando contra os patrões, compreenda que patrões e capitalistas são parasitas inúteis e que os trabalhadores poderiam assumir a administração social. (MALATESTA, 2011, p. 94)

                    O objetivo dos anarquistas, dentro das organizações operárias, não é liderar, coordenar ou servir de vanguarda intelectual aos trabalhadores. Por criticar a autoridade, seja ela qual for, e a hierarquia, os anarquistas defendem que “o novo modo de vida social saia das entranhas do povo e corresponda ao grau de desenvolvimento atingido pelos homens e para progredir à medida que os homens avançam” (2011, p. 95). Impor-se como único caminho para liberdade e revolução “não seria o triunfo da anarquia, mas nosso”. Malatesta defende a criação de núcleos em torno dos quais as massas possam reagrupar-se rapidamente, “tão logo elas sejam liberadas do peso que as oprime”.

Não há vida no isolamento, o homem é impotente, incapaz de ter uma “vida superior” sem organização – o que para Malatesta é o sinônimo de sociedade. Anarquia significa organização sem autoridade (como finalidade de impor sua vontade) e o “fato inevitável e benéfico de que aquele que compreende melhor e sabe fazer uma coisa consegue fazer e aceitar mais facilmente sua opinião” (2011, p. 106). Aquele que detém qualquer tipo de conhecimento útil para a sociedade ou o grupo que participa serve como guia, reconhece que sua posição de “liderança” é passageira e limitada àquela atividade que domina ou tem maior conhecimento. A alternância de “autoridade” tem como propósito o conhecimento, a educação, uma distribuição intelectual ou prática de uma determinada função. A autoridade não é necessária para organização social enquanto houver harmonia de interesses em sua coletividade, enquanto ninguém pode frustrar outras pessoas, não há sinal de autoridade.

É preciso não só organizar-se, mas, ao identificarem-se com o programa, é preciso aplicá-lo. A anarquia, segundo Malatesta, não existe sem a prática; para isso, a associação serve como caminho para realização das ações. Há amplas formas de se concretizar a prática anarquista, uma delas sendo os jornais e periódicos, comuns na Itália como forma de transmitir o ideal libertário. Pela maior parte dos imigrantes estabelecidos no Brasil ter sido de origem italiana, essa prática foi largamente defendida como sendo o mais eficaz, tendo duas consequências: a fragmentação textual, produção de ensaios curtos, objetivos e de fácil difusão, o que acabou caracterizando a escrita e os textos anárquicos; e a maior aceitação nos meios operários, até o início da década de 1920, pelo difícil acesso e produção dos livros de esquerda, socialistas e anarquistas: “Precisamos de um jornal. Se estamos organizados, podemos reunir os meios para fundá-lo e fazê-lo viver, encarregar alguns camaradas e redigi-los e controlar sua direção” (MALATESTA, 2011, p. 112).

                   O sindicato, enquanto programa e prática para se alcançar a revolução social, foi apontado por Malatesta como sendo um caminho que só teria sucesso se houvesse um comprometimento com a emancipação dos operários. Ele acreditava que o sindicato era, por natureza, reformista, portanto, ceifador do espírito revolucionário, que frequentemente buscava interar o corpo do Estado e não sua destruição. Seria preciso reforçar e trabalhar constantemente para manter o espírito revolucionário, sendo assim o único meio para tornar o sindicato uma organização revolucionária:

[…] o sindicato operário é, por sua natureza, reformista, não revolucionário. O espírito revolucionário deve ser-lhe levado, desenvolvido e mantido pelo trabalho constante dos revolucionários que agem fora e dentro do sindicato, mas não pode provir de prática natural e formal. (MALATESTA, 2011, p. 126)

                    Diferente da concepção bakuniniana e defendida na Primeira Internacional, que postula que a nova sociedade se realizará pelo ingresso de todos os trabalhadores nas seções da Internacional, Malatesta defende que a nova sociedade só pode ser erguida “destruindo os quadros e criando novos organismos correspondentes às novas condições e aos novos objetivos sociais” (2011, p. 128). Esse ideal desenvolve-se para combater o corporativismo, que seria um obstáculo à satisfação das novas necessidades da sociedade.

A organização nada mais é que a prática da operação e solidariedade, condição natural e necessária da vida social, fato inerente que se impõe a todos, tanto na sociedade humana em geral quanto em todo grupo de pessoas que tenha um objetivo comum a alcançar. Para isso “as organizações anarquistas devem, em sua constituição e em seu funcionamento, estar em harmonia com os princípios a anarquia” (2011, p. 164). Toda e qualquer organização serve um propósito final, à revolução social.

Do século XIX até meados do XX, anarquia significa revolução social, período de rompimento que destruirá as fundações do Estado e suas instituições, sua moral opressora e unirá os trabalhares, harmonicamente, em torno da solidariedade e associações livres, que construirão uma nova sociedade. Após, aproximadamente, a década de 1970, essa concepção de anarquia transforma-se em uma ideia de “paraíso prometido” que, apesar da revolução social ser o caminho, a construção de uma nova sociedade se torna uma construção fantástica de um mundo onde a liberdade, solidariedade e organização livre é a moral comum a todos.

Em um primeiro momento, o conceito de revolução social e anarquia possui um caráter racional e pragmático que relaciona a ação e organização com o resultado final causado por esses impulsos. Com o acréscimo de novas concepções e ideias de organização, além de novas frentes de luta, o anarquismo fragmenta-se em mais vertentes que concebem o futuro da sociedade como um caminho alternativo à revolução, como alternativa para a sociedade estabelecida, o isolamento organizado de indivíduos que, partindo de uma concepção primitiva de constituição social, afastam-se e criam uma nova sociedade, guiando-se por uma nova concepção moral, ocasionalmente, baseada em princípios anarquistas.

A Hedra adota como representação da anarquia, ou revolução social, a primeira concepção, comum ao século XIX e início do XX, que a revolução é o produto final da organização e materialização do ideal anarquista. Emma Goldman, em seu ensaio “A revolução social é portadora de uma mudança radical de valores”, concebe a revolução como processo independente do desenvolvimento industrial e das “poderosas contradições sociais”, que não espera o desenvolvimento de tais situações para concretizar-se como revolução. A revolução “funda-se num desejo ardente de liberdade, nutrido por um século de agitação revolucionária entre todas as classes da sociedade” (2011, p. 79).

Segundo Goldman, o desenvolvimento e o sucesso da revolução dependem da extensão do gênio criativo do povo, da colaboração dos intelectos e o proletariado manual. Para Kropotkin a revolução é “inevitável, tudo leva a ela, tudo contribui para isso. E embora a resistência governamental possa ajudar a adiar a data de sua eclosão, entravar seus efeitos, não pode impedi-la” (2012, p. 40). Anarquistas defendem a revolução como fato inevitável, como consequência da organização social atual. Diferente da concepção socialista, no anarquismo não há período intermediário entre o sistema vigente e a revolução social.

Para nós, a revolução social a ser feita apresenta-se sob o espectro de uma longa sequencia de lutas, de transformações incessantes que poderão durar longos anos, em que os trabalhadores, derrotados de um lado vencedores no outro, chegarão gradualmente a eliminar todos os preconceitos, todas as instituições que esmagam, e em que a luta, uma vez começada, só poderá chegar ao fim quando, tendo finalmente destruído todos os obstáculos, a humanidade puder evoluir livremente (KROPOTKIN, 2012, p. 42-43)

Na sua coleção, a Hedra não só aborda os temas comuns ao anarquismo do período “clássico”, mas as principais ideias difundidas pelos militantes brasileiros. Através de ensaios, jornais, periódicos e eventos culturais, anarquistas brasileiros difundiram essas ideias a fim de organizar, conscientizar e moralizar os operários contra o Estado e as instituições que os apoiam. Portanto, os temas, ensaios, títulos e autores não só representam o cenário anarquista internacional, ou são resultados de uma representação filosófica do anarquismo, na verdade é, apesar do uso de anarquistas estrangeiros, uma materialização do que foi o anarquismo no Brasil no início do século XX, através das principais ideias que eram utilizadas em seu meio de atuação. O anarquismo apresentado pela editora é uma reunião que combina a teoria dos autores “clássicos”, com a prática da militância brasileira. Determina, assim, os limites e fronteiras da organização, dos princípios e da Filosofia.

O anarquismo descrito pela Hedra em seus doze livros é uma materialização do anarquismo brasileiro, apesar de usar autores do século XIX, determina uma nova representação e identidade para o movimento. Busca nos ensaios uma representação daquilo que foi o anarquismo nas primeiras décadas da Primeira República, resgatando uma historiografia e relacionando-a com a prática da militância libertária. O Socialismo Libertário é a estratégia do programa editorial da Hedra porque dialoga com as primeiras experiências anarquistas no Brasil, independente se as aspirações dos criadores da coleção estão alinhadas com essa tática – mas se estão, é consequência das práticas desse período – a coleção fornece uma representação dessas experiências, mesmo que por meio de outras identidades, signos e símbolos.

 

Os Despossuídos. LE GUIN, Ursula K.

LE GUIN, Úrsula K. Os Despossuídos

A gestação do mal no útero da bondade.

O “livre-arbítrio” é um ponto genial na filosofia cristã, pois livra deus da culpa e do protagonismo da maldade. Lúcifer, seu primeiro filho (deus criou todos os seres, logo são seus filhos), subversivo e desafiador, foi expulso do reino de seu pai, criou o seu próprio e “espalha sua maldade”. Como um ser divino, logo perfeito, pode criar a personificação do mal, algo tão imperfeito como a maldade?

Lúcifer não possui desejos destrutivos, a priori, corrompe meros humanos, na mesma lógica que seu pai. Deus criou a humanidade e exige dela uma adoração cega, egocêntrica e infinita em troca de favores individuais. Lúcifer concede a indivíduos favores e desejos, em troca também de adoração infinita. Estamos lidando com dois seres cegos pelo ego, destruidores na sua própria maneira. A dualidade cristã é um caso clássico para o divã de Freud.

Lúcifer é seu primogênito, tentou converter ao seu lado o caçula, Jesus ao negar seu irmão, caiu em mãos humanas e sofreu com a morte, sendo renegado no seu último suspiro pelo seu pai, mas ainda conseguiu ascender ao seu reino. Por quê? Talvez a dúvida não tenha incomodado tanto quanto o direto desafio, um ser tão poderoso quanto deus, cego por seu próprio poder e com medo de perdê-lo, não tolera competição, a criação não pode ser usurpada, ela tem que, infinitamente, pertencer a quem a fez. Interessante como isso pode se tornar um golpe de Estado, mas carece de fonte (bíblia) para poder afirmar que o próprio Lúcifer tentou tomar o poder de seu pai. Contente com o segundo lugar mais importante da filosofia cristã (mesmo que essa afirmação possa ser contradita, já que sem o diabo a função divina seja nula), Lúcifer tem o trabalho moral de ordenar, através do medo, não do seu poder, mas do de deus, a sociedade baseada na filosofia cristã. Seu o mal, sem o medo da condenação eterna, ser bom, apenas por ser, não teria espaço.

Estaria Lúcifer livrando a humanidade do egocentrismo de deus ou sendo apenas um filho que não tolera o autoritarismo do pai? Um ser tão perfeito quanto deus poderia criar a maldade e o livre-arbítrio ser o álibi perfeito para eliminar sua culpa?

O livre-arbítrio, nesse caso dado pelo próprio deus, o livra da culpa da maldade de Lúcifer, o Arcanjo preferido do criador, caído, se tornou mal pela liberdade de suas decisões ou pode a bondade ter criado a maldade? Arcanjos são soldados de deus (porque um ser perfeito, onipresente, onisciente e onipotente precisa de um exército?) e como soldados não tem vontade própria (na lógica), seguem ordens de um superior. Por esse caminho, a maldade de Lúcifer tenha se desenvolvido pela tutela do próprio deus?

No ninho da bondade ergue-se a personificação da maldade, mas ela precisa ser desvinculada de deus para se tornar o mal. O pecado de Lúcifer, segundo a bíblia, foi o orgulho, mas o próprio deus não possui orgulho da sua criação e também um pecador? Seu irmão caçula, talvez cego pelo amor incondicional do seu pai, chama seu irmão mais velho de homicida e mentiroso, mas não seria seu pai também o mesmo? Registro de homicídios e genocídios são comuns na bíblia.

Já no jardim do Éden, o Arcanjo decaído subverteu Eva com uma maçã, símbolo do conhecimento. Por que deus teme o conhecimento a ponto de expulsar sua criação de um local sagrado?

Lúcifer talvez seja o símbolo do conhecimento, oposto a cega fé em deus. Mas de fato existe um conflito entre os dois que ultrapassa a dualidade “bem e mal”, A necessidade moral de um “mal” para conflitar com a ordem “bem”, serve perfeitamente na sociedade, permite que, sem recorrer às leis do Estado, cada individuo seja capaz de distinguir ações aparentemente benéficas para os membros da sua comunidade. Mas a moral é subjetiva, o bem não é o mesmo em todos os lugares e a destruição poder ser, em muitos casos, a forma que se tem de renovar a criação, o hinduísmo tem como base tal filosofia.

O mal pode muito bem ter nascido dentro do berço da bondade divina, mas o livre-arbítrio retira totalmente a responsabilidade do bem sobre o mal.

Vingança ou justiça: o que o anarquismo tem a ver com isso?

O que difere vingança de justiça? Eis os conceitos e significados:

Justiça: significa respeito à igualdade de todos os cidadãos. É o principio básico de um que tem o objetivo de manter a ordem social através da preservação dos direitos em sua forma legal. Designa o respeito pelo direito de terceiros, a aplicação ou do seu direito por ser maior em virtude moral ou material. (Significados com br)

Vingança: s.f. Ação de se vingar, de causar dano físico, moral ou prejuízo a alguém para reparar uma ofensa, um dano ou uma afronta causada por essa pessoa.
Ato retaliativo contra quem seria o causador de uma ofensa ou de um prejuízo.
Qualquer tipo de punição, castigo; tudo o que pode castigar ou causar sofrimento. (Dicionário online de português)

I

Vivemos em sociedade, cada indivíduo detém desejos, vontades e aspirações diferentes de cada um, para manter a ordem* dentro da sociedade foram criadas leis que limitassem e, ao mesmo tempo, garantissem os direitos de cada indivíduo. Os conjuntos de leis, formalmente reunidas na figura central do Estado, surgem no intuito de substituir a moral (no caso ocidental, a cristã), mas sem abandonar seus preceitos. O Estado, agora separado dos poderes religiosos, reúne um conjunto de regras que manterá a ordem, garantindo direitos para todos, isso na teoria.

A Justiça, na teoria, garante que todos os indivíduos permaneçam iguais, com todos os direitos garantidos pelo Estado. Porém, existe um prazer na Justiça. Somos doutrinados a pensar que a justiça nunca falha, que uma hora ou outra aquele individuo que cometeu um crime será punido. Já ouvimos muitas vezes que “justiça será feita”, “que aquela pessoa irá pagar pelos seus crimes”. Quem detém o poder da justiça é o Estado, ele que determina o que e como será feita essa justiça, quais punições e onde ficará o punido.

 

A justiça é, na verdade, uma vingança, mas só que praticada pelo Estado. Só ele pode julgar, sentenciar e executar aquele individuo que burle ou comprometa a ordem. É bem subjetivo. Pode um individuo ser considerado uma ameaça por luta contra um governo tirano, sendo assim condenado por esse mesmo governo, já que a justiça atua segundo seus desejos. Portanto, quem faz a justiça e quem determina por qual caminho ela irá seguir é o Estado. As leis são criadas para garantir não só seu funcionamento, mas também para proteger aqueles grupos que detém o poder ou que por ele é diretamente beneficiado. As leis foram criadas para manter os direitos e a igualdade entre os indivíduos, mas funciona perfeitamente para garantir que uns tenham muito e outros quase não possuam. Esses despossuídos vivem à margem da sociedade, famintos, sem educação, cultura e moradia, com suas liberdades sufocadas e minimamente garantidas pelo governo. A liberdade é limitada ao consumo, quem possui consegue todos os direitos garantidos pela lei, ou seja, a justiça não é cega, pelo contrário, consegue enxergar bem aqueles privilegiados.

Junto com a justiça vem um prazer. É um prazer seletivo em muitos casos, em que uma camada da sociedade, ou um grupo, sente uma satisfação em presenciar a punição. Por exemplo, os principais programas de maior audiência nos Estados Unidos são aqueles que transmitem julgamentos; além do prazer, existe um entretenimento, a justiça não só se tornou uma forma de prazer, mas também de diversão, onde a encenação é real.  No Brasil, não são televisionados, mas a “justiça” é feita e transmitida pela mídia que transforma cada caso em específico em audiência. A comoção nesse caso é ainda mais seletiva, comove mais a população se um acidente ou um crime acontece com uma família de classe média/alta, mesmo se esse fato seja recorrente em bairros periféricos.

A justiça é entretimento e prazer! Passa uma sensação de conforto e segurança, a ‘certeza’ que, de alguma forma, a justiça atua para garantir “as liberdades, os direitos e as igualdades” individuais.

II

No Anarquismo a justiça atua nos limites da vingança e da própria justiça. Quando um individuo – dentro das ideias anarquistas e do que já foi desenvolvido dos inúmeros textos já publicados e pensados por escritores anarquistas e também nas práticas (uma boa leitura a fim de esclarecer tais duvidas é a obra de Ursula L. Guin, Os Despossuídos) – se torna uma ameaça ou ,por impulsos psicológicos nocivos, se torna um “mal” para a comunidade ele é isolado pelos outros, a fim de garantir as liberdades, tanto individuais, quanto coletivas. A justiça Anarquista é moral, baseada no desejo da coletividade e do individuo em manter a “saúde” das atividades garantindo a liberdade e integridade, tanto do coletivo quanto daquele individuo que se torna nocivo. Porém, tal ideia não se torna uma cartilha, um método a ser seguido.

Em experiências como a Guerra civil espanhola, as prisões foram esvaziadas e para os presos dado uma “segunda chance”, por saber que a Justiça do Estado comete crimes.

É preciso entender a diferença significativa entre a Justiça do Estado e a justiça proposta pelo anarquismo. No primeiro ela não igualitária, nem garante o direito a todos, funciona segunda a determinação de poucos e segundos a moral de poucos (também na religiosa cristã), é um conjunto de regras em que, não só se estabelece uma ordem de cima para baixo, mas também reprimi, estrangula os despossuídos e garante a liberdade para uma parcela mínima da sociedade. Nem todos tem acesso ao Direito, igualdade é meramente uma ilustração, não prática. Na segunda propõe, moralmente, uma transformação nas nações de como a justiça trabalha, ou seja, as decisões são entre todos e com a participação de todos, é o coletivo que decide quais as ações a serem tomadas em um determinado problema. Diferente da justiça proposta pelo Estado, no anarquismo a ideia de justiça estabelece o acesso de liberdades e direitos à todos, não condiciona o comportamento e nem decide sobre a vida individual, não determina como será a forma ideal, isso compete tanto ao individuo quanto nas decisões coletivas em comum acordo. Dentro do livro Os despossuídos, porém, demonstra que essa própria ideia, posta em prática, não segue padrões e nem sempre segue com fé nas ações humanas. No livro demonstra que o “vizinho” seria a polícia, explicando melhor, a moral determina o que seria certo e o errado, o “bem e mal” cristão. O comportamento ainda seria vigiado, agora não pelo Estado, mas pelos indivíduos que compõem a sociedade e, como o ser humano é um vaso falho de ideias e comportamentos, essas práticas poderiam levar a injustiças. Viveríamos ao sabor da vingança da justiça ou da moral vingativa?

 

Participe da discussão: Não existe justiça perfeita, sendo o ser humano também imperfeito, como então alcançar práticas que possibilitem maior liberdade possível e uma igualdade real entre indivíduos dentro de uma sociedade?

 

Chá com biscoitos

Chá com biscoitos

 

Nossos limites são aprendidos dentro de uma educação que nos limita, no cerceia e nos acorrenta. Quem está disposto a quebrar tais correntes? Somos capazes de quebrar elos complexos, nocivos e que nos ameaçam em determinados momentos de nossa vida, mas quem consegue de forma real e concreta quebrar toda a prisão? Então, vivemos dentro de nossas próprias hipocrisias, em redomas moralistas que foram criados e que cultivamos com carinho, repulsa, aversão, rebeldia e, muitas vezes, carinho. Poucos são capazes de confrontar tais jardins, quem dirá destruí-los. Somos, pecando numa generalização, seres anti-morais, os que são amorais ainda vivem uma moralidade, onde se conservou traços daquela aprendida no berço salpicada de rebeldias conquistadas com suor, melancolia, tristeza, raiva e motivação.

Conhecemos-nos? Sabemos nossos limites? Nossas fronteiras, se é que temos ou se cada um reconhece a sua – ou se determinou alguma pra si – modelam nossa personalidade (pecando numa generalização apimentada com um “achar”), o que nós somos, de forma bem geral, é determinado pelos nossos limites, moral e experiências, positivas ou negativas. O meio que vivemos é um ingrediente muito importante dentro dessa culinária.

A sociedade é um corpo autoritário, preconceituoso, nocivo na sua forma institucional, nas suas representações culturais, religiosas e educacionais. Sua moral cerceadora e preconceituosa, em pleno século XXI, determina a vivência, os sentimentos, o amor, o ódio, a raiva e o comportamento diário das pessoas. A moral é responsável também pela imposição de limites, o quão longe posso ir à defesa da minha integridade física, por exemplo? A moral controla o processo produtivo de cada individuo, o quanto situações emocionais podem influenciar na vida social de uma pessoa, a dosagem de raiva, rebeldia, amor, solidariedade, etc.; sem essas amarras o que seria de um ser humano que, segundo alguns pensadores (do sendo comum ou não) já afirmaram, a humanidade é por natureza cruel.

É a moral por si só que controla os impulsos agressivos e destrutivos da humanidade? Sem moral, viveremos em um estado de destruição e agressão? A moral atual é plena de justiça, humanidade e paz? Não seria a nossa cidade, moralizada, repleta de violência e destruição? Substituir a moral seria o caminho para uma forma mais humanizada, justa e solidária com os comportamentos (sociais, culturais, políticos, econômicos e sexuais)? Qual moral atende as demandas de uma sociedade de forma mais justa?

 

Livres do Tempo

[o texto seguinte sai um pouco fora do tema “anarquismo”, mas quem sabe poderá ser usado para alguns questionamentos sobre como usamos o tempo ou como o tempo nos usa]

Livres do Tempo

Uma vez, me deparei em uma pista de corrida, o tamanho dependia de quem a olhava, nela corriam o Passado, o Presente e o Futuro. Intrigado, me aproximei. Acontecia tudo muito rápido… cheguei mais perto da pista e movido pela curiosidade questionei ao Presente:

– Olá, o que está acontecendo aqui?
– Eu não posso parar, eu tenho que alcançar o Futuro e o Passado não sai de perto de mim. Não posso parar de correr!
– Mas qual o motivo dessa corrida?
– Eu não sei, mas não posso perder meu tempo com você agora.

O Presente não tinha tempo, o Passado estava quase alcançando, enquanto o Futuro se distanciava. A resposta rápida do Presente me deixou ainda mais curioso. Vi que logo perto havia uma arquibancada e nela uma criança estava sentada comendo pacientemente um saco de pipocas. Sentei-me próximo a ela e passei alguns minutos só olhando a competição que estava cada vez mais acirrada. Gentilmente, ela me ofereceu um pouco da sua pipoca. Neguei e continuei encarando ignorante toda aquela situação.
O tempo passou, incomodado e sem saber o significado de toda aquela agitação por parte dos competidores, interroguei a criança:

– O que está acontecendo? Por que o Passado, o Presente e o Futuro estão correndo?
– Ninguém sabe. Desde que cheguei, eles estão nisso. Perguntei o porquê, mas só o Presente fala comigo, os outros apenas me ignoram.
– É surpreendente a velocidade que correm.
– Isso não é o mais importante, desisti de questioná-los sobre o significado de tudo isso, estou apenas observando, tentando imaginar onde querem chegar.

Passado alguns minutos, a Criança olha pra mim e diz:

– Descobri algo!
– Descobriu o motivo de correrem?
– O Passado, o Presente e o Futuro não estão em uma competição, na verdade, eles são a mesma coisa, a mesma substância. Não podemos separá-los. Correm ao mesmo tempo, às vezes um ao lado do outro, às vezes como um só, às vezes nem correm. Tudo isso não passa de uma ilusão, nossos olhos nos fazem ver isso, nossa mente nos faz sentir isso. Temos que pensar o tempo como uma coisa só, não o separando, precisamos ver que o Passado, o Presente e o Futuro estão ao mesmo tempo acontecendo, feito isso não verás mais uma competição e nem a pista de corrida existirá mais.
– Mas sem pista de corrida? O que seremos sem a pista de corrida e sem essa competição entre eles?
– Livres!

Um breve esclarecimento sobre o voto nulo

O voto nulo não é a prática revolucionária de fato. É a ideia de não compactuar com um sistema representativo que torna secundária a ação política de cada individuo. A ideia é organizar-se e lutar nas bases, junto a comunidade. Votar nulo está além do não gostar do candidato ou discordar das práticas ou das propostas, está na discordância do sistema eleitoral obrigatório, na democracia representativa, com as alianças dos partidos ditos de esquerda, com o empresariado e o financiamento dos bancos e das megas empresas. Contra a manipulação midiática da direita, seu fascismo e preconceito. Influenciar uma maior participação da população dentro da prática política, descentralizar o foco de ações, incluir a população mais pobres e conscientizar, segundo suas vontades, que podem fazer e participar da política. E não focar na pura responsabilidade de apertar alguns números e pensar que isso é fazer política.

Não é expondo a simpatia por um candidato, mudando as fotos que estar fazendo política. O voto nulo questiona a simples participação por voto, dentro de uma democracia representativa com 200 milhões de pessoas, onde poucos tiveram acesso a pouca ou quase nenhuma conscientização política ou até educacional. É lógico, numericamente falando, o quão é ineficaz o sistema vigente, é impossível, sem coação e violência, que 200 milhões de pessoas se organizem para fazer política. Por isso, é preciso um sistema que transformem cada indivíduo em gado, em cordeiros pacíficos, para que ocorra o mínimo de organização [partidária].

O voto nulo é uma alternativa contrária a esse quadro, dentro de um sistema obrigatório de voto, é uma expressão de insatisfação. Mas por si só nada significa. É preciso lutar, organizar, inserir-se na comunidade e, com a participação de todxs, livremente, fazer política, transformar o ambiente em que se vive, buscar conscientização e educação igualitária para todxs.

Para além do voto: organização e luta!

“Votar nulo, se organizar e lutar”, esse tem sido o “lema” anarquista por décadas, como estratégia de combate à democracia representativa. As eleições são um oferecimento das empresas que, por quatro anos, governaram o país com ajuda dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Os candidatos farão valer os interesses dessas empresas que doaram milhões para suas campanhas, por mais a esquerda que as pautas sejam.

Deparamos-nos com um recorde de voto nulo, branco ou abstenções, que alcançaram o segundo lugar, sendo a região Nordeste a maior incidência de votos nulos. Mas precisamos ter cuidado, muitos aderem ao discurso do voto nulo ou abstenção como discurso liberal. Anarquistas diferem desse simplista discurso como oposição ao sistema representativo, afirmando que existe organização além do voto, próximo com a população pobre e na intenção de incentivar as minorias a fazer sua própria política, decidindo sobre suas próprias vidas. “Nenhum governo nos representará”.

O segundo turno vem sendo marcado pelos ataques, uma disputa entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e suas coligações e o PSDB e seus aliados. O discurso esquerda VS direita é usado como forma de arrecadar mais aliados, porém, o PT deixou a muito tempo de ser esquerda. Hoje faz frente a pautas políticas de centro, dando os meios para o capital se expandir, protegendo os interesses de mega empresas, capital externo e burguesia, aliado com uma política assistencialista aos pobres. O PSDB sempre se mostrou um partido que defende os interesses dos mais ricos, aliado da especulação imobiliária e de uma maior distância entre o rico e o pobre. As diferenças são poucas.

As manifestações de 2013 e desse ano, contra a copa e pela melhoria do transporte público e pelo passe livre, mostraram o caráter autoritário do Estado, onde policias foram protagonistas de excessos: estupros, violência, assassinato, perseguição. Nesse quadro vários militantes governistas demonstraram apoio para os excessos do Estado e de suas polícias, compraram o discurso nacionalista e patriota para validar um evento que destinou 28 bilhões de reais para construção de estádios, reforma de aeroportos, portos e vias de acesso aos locais dos eventos. Ficou claro o papel do Estado, do parlamento e da policia: a defesa dos interesses privados.

O voto nulo é uma forma de mostrar insatisfação pelo sistema eleitoral, governo e desigualdades ainda existentes no país. Os partidos mantêm pautas reacionárias no combate as drogas, no casamento igualitário, na legalização do aborto e no combate a violência contra a mulher e a homofobia. Poucos são aqueles que têm a disposição para o debate aberto sobre esses temas.

Existe organização fora do sistema representativo, sistema esse com falhas e não garantem o debate e nem a liberdade da população, principalmente da mais pobre, que se vê dependente do Estado, com pouco acesso à Cultura, Educação e Saúde. Votar é permanecer refém das decisões de um Estado assassino, que defende interesses do capital e oferece migalhas para a população pobre.

As eleições são a falsa ilusão de que, por meios reformistas, a sociedade alcance um aprimoramento ou que traga mais liberdade. A liberdade que existe nesse sistema é a de consumo.

A organização para além do voto defende que há a possibilidade de você, no seu bairro, escola, trabalho, rua e comunidade, fazer sua política, defender seus interesses e, associando-se com outros, lutarem por melhorias, espaços de cultura, melhores infraestruturas, saúde e educação. Espaços de livre associação, descentralizados e horizontais, livres de preconceitos, onde todxs tenham voz, poder e possibilidade de decisão.

Votar nulo não é compactuar com o jogo da direita, tão pouco aceitar as propostas recuadas e reformistas dos partidos de centro. O voto nulo é a discordância de um sistema que não atende nossas necessidades, que limita nossa liberdade e que não nos representa, já que prefere defender os interesses de grandes empresas aos dos mais necessitados. Não existe aliança com os dois extremos da sociedade, ou se luta com os de baixo ou se explora com os de cima.

Não faremos parte do circo das eleições, não nos deixaremos levar por comentários levianos buscando apoio da esquerda por um partido que a muito tempo deixou de ser esquerda, nem vamos nos aliar a direita fascista.

“Seja lá para quem eles votem, somos Ingovernáveis”.

“Aquele que botar as mãos sobre mim, para me governar, é um usurpador, um tirano. Eu o declaro meu inimigo.”
―Pierre-Joseph Proudhon

O fim da polícia e a construção de uma sociedade moralmente libertária

E se a polícia acabasse hoje?

Felicidades pra uns e terror pra outros? Não se sabe. Vivemos experiências ocasionais quando se trata das greves das polícias militares e civil, mas não temos como prever os acontecimentos com o término da policia e das instituições que fazem a “segurança” da nossa sociedade. Dependemos delas na atual circunstância, porém, em uma sociedade igualitária é necessário uma força de coação? Ainda não temos uma experiência histórica que comprove tal contexto.

Contudo, as críticas são fortes e lógicas, já que não vivemos em tal sociedade (de desigualdades). Mas, considerar o caos sem uma polícia tendo experimentado somente essa realidade é um pouco vago. Então, cabe bastante reflexão no assunto.

Pelas recentes experiências de greves, Bahia e Pernambuco, podemos constatar que de fato ocorre o caos com a ausência da polícia, o que é esperado, já que muitos tem tão pouco e poucos tem muito. É para qualquer um quê deseje refletir, explicitas as desigualdades em nossa sociedade, deparando-nos com essa realidade podemos cogitar as ações que acontecerão em uma sociedade sem vigilância. Saques, assassinatos, estupros, invasões, etc. Num mundo onde a propriedade privada é de central importância para manter as estruturas morais, como não prever que haverá um “caos”, uma desordem?

Reflito, porém, em outras situações, dentro dessa mesma análise que a polícia se torna obsoleta. Em pequenas comunidades, onde não estão bem definidas as propriedades individuais, a polícia tanto não é preciso como se estabelece uma moral norteadora, “primitiva”, diriam alguns. Nem sempre, historicamente, foi necessária uma força de coerção, isso a tradição histórica demonstra por vários casos. A necessidade de uma segurança ou vigilância, numa demonstração simples, mas não simplista, está ligada diretamente a proteção da propriedade privada. Numa realidade mais complexa, a vigilância é necessária na proteção de pessoas que fazem parte, institucionalmente, de um governo estabelecido, seja ele qual for, numa sociedade tribal que se centralize na figura de um chefe militar ou religioso, até a monarquia mais rígida ou liberal.

O conceito de policia se concretiza na proteção de uma minoria e não de uma maioria, a idéia de que a população pobre está segura com a presença das polícias é totalmente inocente, constata-se essa realidade quando se analisam os números de homicídios praticados por policiais nas favelas do mundo. A instituição foi criada para garantir as leis formuladas por uma minoria, para a proteção de uma minoria, para garantia da propriedade privada que essa minoria detém.

Numa comunidade pobre as instituições não são cristalizadas como nos grandes centros. A moral lidera, impera e é deusa. A policia são os participantes da própria comunidade, porém, não é ostensivo. Nessa realidade o problema são as figuras que emergiram como juízes, que analisarão os transgressores e os “individualistas” e os punirão, segundo a moral ali estabelecida. A moral sempre rondou as mentes das comunidades que foram erguidas ou as que serão, seja ela de qualquer ideologia, pensamento ou corrente filosófica. Não podemos fugir da moral.

Em leituras sobre sociedades ou idéias de sociedades anárquicas ou libertárias, houveram moral estabelecida, contudo uma moral libertária, direcionada para uma maior ou total liberdade. Quando o totem (pegando emprestado um termo centralizador de comunidades pré-colombinas) é construído em torno da liberdade as direções que uma comunidade pode tomar são infinitas. Presume-se que não possuirão juízes, policia ou governo estabelecido verticalmente, isso na teoria. Mas o homem não é teórico. Pensamos que haverá problemas na construção dessa comunidade devido à carga moral trazida dessa sociedade, punitiva, cerceadora e egoísta (no sentido de privação do gozo das contemplações físicas, sociais e culturais), estabelecida na propriedade de tudo, seja do corpo, das posses, etc. E não se pode esperar que todxs abandonem seus preconceitos da noite pro dia. Logo, cabe a construção coletiva, as bases morais dessa nova comunidade, estabelecendo o terreno para uma sociedade mais libertária, em quê a liberdade seja não só total, mas ampla para todxs.

Não consigo imaginar tal sociedade cercada por muros, com viaturas pelas ruas e com julgamentos. Será utopia pra uns, mas outros pensarão que a utopia é só algo que ainda não conseguimos realizar… Ainda!

 

Vejo a crítica da ausência da policia como um caos bem simplista, quase rasteira, sem analisar que estamos numa sociedade que deseja tal caos, devido as estruturas estabelecidas que garantem a permanência da propriedade privada e da distância, cada dia maiores, entre ricos e pobres. Foco o problema, essencialmente, na necessidade da manutenção do sistema já estabelecido; para ele é imprescindível que haja, de tempos em tempos, falhas corrigíveis, para fortalecê-lo, porque, sabendo das falhas é possível uma melhor repressão.

Vejo que a condenação dos saques, dentro desse contexto de greves da polícia, é equivocado, pra não dizer injusta. Nossa sociedade é consumista, muitos não tem direito de consumo e, justamente por isso, não existem para o sistema, excetuando em situações que fogem a “ordem” vigente, como o saque, o furto e roubo, quando viram estatísticas. E são nessas situações, nas greves, por exemplo, que surge a oportunidade de consumir, mas não pelos meios “legais”. É no transcender da lei que essas pessoas podem se identificar como cidadãos. Podem usufruir o que vêem todo dia na TV, nos outdoors, na rádio e na internet, nas novelas e nos filmes e, a partir disso, se reconhecerem como indivíduos pertencentes a essa sociedade. Não importa se saquearam uma TV, pacotes de feijão ou produtos de beleza, com isso, “fazem parte” dessa sociedade, estão integrados, já que o Estado fortalece, todos os dias, a distância que existe entre elas e o consumo.

E a moral estabelecida nesse sistema, lhes diz que “pessoas de bem” não comentem tais “crimes”. Mas como consumir tal produto? Pelo trabalho? Como chamar de trabalho uma relação em que o parasita burguês, o patrão e o chefe, recebem muito mais pela produção sem nem sequer fazer parte dela? É desonesto exigir dessas pessoas que fiquem alheios a situações como essas e não dêem um passo para “existência” consumista dessa sociedade. São bombardeados diariamente com propostas de consumo, sendo a filiação aos bancos e o pedido de crédito (com juros enormes) a única forma de conseguir tais produtos, fortalecendo, assim, todo o processo de exploração e ajudando a manutenção do sistema.

A policia só é necessária numa sociedade desigual, porque, seguindo uma lógica, em uma comunidade que ninguém possui nada, não há o que roubar ou usurpar. A propriedade mostra-se como principal motor para a existência da corporação (polícia), além da manutenção do poder de uma minoria, sem isso, seria necessária a existência de uma policia?

Das relações de poder não podemos fugir, assim como da regência da moral, mas a concentração de poder pode ser desmembrada e uma moral baseada na liberdade e na igualdade (em todas as instâncias) pode ser construída.