Esse texto é uma adaptação de um trabalho de conclusão de curso que consiste numa análise sobre as representações do anarquismo no Brasil, através da coleção “Anarcos de Bolso” produzida pela Editora Hedra, de São Paulo.
Hedra, História Editorial: representações do anarquismo no Brasil
Autor: Thiago Cunha
- Introdução
- Elementos Editoriais
- Construção temática da coleção
INTRODUÇÃO
O imigrante europeu que chegou ao Brasil, em finais do século XIX, para substituir a mão de obra escrava que já encarava seu fim, trouxe não só as expectativas de mudança de vida na América, mas também a ideologia anarquista que na Europa se consolidava como movimento sindical e filosófico de oposição ao capitalismo e a todo tipo de opressão realizada pelos Estados Nações. Os livros sobre anarquismo adentraram em terras brasileiras trazidos principalmente pelos italianos, alemães e poloneses, familiarizados com os escritos de Malatesta, Proudhon e Bakunin, três dos principais autores do anarquismo do século XIX.
Da extensão filosófica do anarquismo a vertente mais usada e aceita no Brasil foi o anarcossindicalismo, com uma ideologia de organização centrada no coração do sindicato que, ao mesmo tempo sendo o reduto da luta operária, se converteu também no centro cultural e transformador da consciência do trabalhador. Já em 1906, através do congresso operário que foi realizado no Rio de Janeiro, os trabalhadores escolheram o anarquismo como ideologia que os guiaria na luta por melhores condições, redução da jornada de trabalho e abolição do trabalho infantil, dentre outras revindicações.
O anarquismo propunha a abolição total do Estado e a substituição pela autogestão, uma administração com participação popular através de assembleias e, em alguns casos, democracia direta. O caminho para a consagração das ideias anarquistas era a conscientização política e a educação, não só do proletariado, mas de todos os explorados. Diferente do socialismo, o anarquismo não distinguia setores, classes ou segmentos virtualmente revolucionários ou supostamente contrarrevolucionários, como afirma Woodcock:
Os anarquistas tinham uma tendência a considerar como rebeldes pela própria natureza os déclassé, que Marx desprezava, sobretudo por não se enquadrarem no seu rígido modelo de estratificação social; em consequência, o movimento anarquista sempre manteve estreitas ligações com aquele mundo sombrio onde rebelião e criminalidade se misturavam […]. (1986, p. 79, grifo nosso)
Em resumo, os anarquistas não consideravam o proletariado classe universal, predestinada a se constituir como vanguarda do processo revolucionário. Em outra discordância com o socialismo, o anarquismo valorizava o primitivo, a vida em pequenas comunidades, propondo na verdade uma espécie de simplificação da vida social.
O anarquismo parte do pressuposto de que, em primeiro lugar, o homem é um ser naturalmente social e que todo indivíduo que é dotado de razão, assume assim que toda autoridade é desnecessária, e vai além: qualquer forma de autoridade é nociva, prejudicial aos interesses dos indivíduos e das comunidades. Segundo Proudhon:
“Quem quer que coloque a mão sobre mim para governar-me é um usurpador e um tirano – eu o declaro meu inimigo” (2007, p. 30).
A anarquia, não só no Brasil, mas em todo lugar onde ela mobilizou segmentos da população, foi identificada como desordem, destruição e caos, simbolicamente associado à Hidra de Lerna, monstro mitológico grego. A maioria dos pensadores do anarquismo privilegia o momento da destruição da velha sociedade ao momento da construção da sociedade nova, o que leva o Estado a identificar o anarquismo como uma filosofia ameaçadora, logo associada ao terror, tanto pelos governos quanto pelo senso comum.
No Brasil, o anarcossindicalismo lutou contra a exploração do Estado e dos patrões, encarregou-se de protagonizar a luta pela redução da jornada de trabalho e aumento salarial. Caracterizou-se, ainda, pela recusa na participação da luta política institucional e eleitoral. Os militantes anarquistas organizaram greves, passeatas, manifestações de rua e a mobilização da própria classe trabalhadora. Não só como reduto de organização do operariado, o sindicato libertário também era um reduto cultural e educacional para o trabalhador. Era preciso conscientizar o operário da sua exploração, fazê-lo ser protagonista da sua própria libertação. Organizavam assim manifestações culturais, escolas livres, modernas ou racionais e algumas universidades populares. Todas essas manifestações e instituições culturais tinham como principal função a mobilização, a conscientização dos explorados – forjar ou reforças consciências revolucionárias – formar um homem novo, livre e soberano, através de um discurso didático e objetivo em que a questão social é a temática central e a revolução social é o fim almejado.
Em novembro de 1918, a cidade do Rio de Janeiro iniciou um verdadeiro renascimento que foi recuperando os efeitos da devastação provocada pela epidemia e pela fome, consequência da gripe espanhola. O jornal A Razão – periódico operário do inicio do século XX – enfatizou, em uma das suas edições, a “progressão aniquiladora da fome” que atingia em especial os subúrbios, mas também o coração da cidade, principalmente entre as famílias mais pobres. Criticou duramente também a violência policial contra os operários e a população pobre em geral:
As violências praticadas pela polícia arbitraria do Sr. Aurelino Leal já atingem ao máximo absurdo. O proletariado, que no governo Wenceslau foi duramente perseguido e espezinhado nos seus direitos, é agora vitima dos últimos arrancos, das derradeiras violências da administração policial que estrebucha. (A RAZÃO, 1918, p. 160)
O jornal alertou também para uma eminente Revolução Social, que viria através de uma greve geral: “E essas infames violências poderão trazer para o governo que vai começar no dia 15 uma surpresa desagradável: a greve geral, como protesto coletivo a essas vilanias do Sr. Aurelino, e talvez até uma revolução popular”. (A RAZÃO, 1918, in p. 160) .
No Rio de Janeiro, em vésperas da Insurreição Anarquista de 1918, era esse o quadro: grande insatisfação do operariado devido à fome que assolava a cidade e todo país por causa da gripe espanhola e também como consequência da Primeira Guerra Mundial, já em seus últimos dias. No dia 15, após o Presidente eleito, Rodrigues Alves, ser afastado por enfermidade e seu interino, o vice Delfim Moreira, ser escolhido pelo cargo, o Jornal do Brasil publicou um artigo chamado A Paz Social – a ordem no trabalho, como tentativa de manter os operários inertes e uma forma de opor, ideologicamente, a mobilização dos militantes anarquistas, em que enfatizava a necessidade do respeito à ordem, à autoridade e à disciplina:
Finda a guerra, isto é, subjugado o militarismo prussiano […] resta agora aos povos, que se mobilizaram para a luta, gozarem tranquilamente os frutos da liberdade, da justiça e do direito […] E ao Brasil mais do que nunca se desenha um futuro verdadeiramente auspicioso […] Todas essas esplêndidas oportunidades demonstram a vida intensa do trabalho, que se vai desenvolver no Brasil e as magníficas possibilidades que se deparam aos nossos operários. Mas, para que possamos dela gozar, nunca como neste momento, impõem-se à nossa sociedade a ordem, o respeito a autoridade, a fé no poder da democracia, o trabalho dentro da disciplina, para o gozo sereno da paz social. (JORNAL DO BRASIL, 1918a, p. 160)
Foi no dia 18 de novembro de 1918, no Campo de São Cristovão, entre as 15 e 16 horas, que houve ápice da repressão aos anarquistas no Rio de Janeiro. Os trabalhadores têxteis paralisaram simultaneamente o trabalho, declarando-se em greve; os trabalhadores da construção civil e os metalúrgicos também aderiram à greve e vários outros grupos de operários grevistas começaram a convergir para o campo, tomado por volta das 17 horas por centenas de trabalhadores. O Jornal do Brasil descreveu assim os acontecimentos:
Ontem, cerca das 17 horas, foram chegando ao Campo São Cristóvão grupos de operários, que em atitude pacífica, iam cada vez mais engrossando a onda. A policia do 19º Distrito que tivera conhecimento antecipadamente desta reunião estava a postos.
Começaram então a circular boatos, e cada qual o mais desencontrado, sendo que alguns emprestavam aos operários ideias sinistras. […] Por fim as ordem foram positivas. O chefe de polícia determinava ao delegado que dissolvesse o grupo. […]
Aproximando-se do grupo, o delegado dirigiu-se a alguns operários intimidando-os a que se dissolvessem em nome do chefe de polícia. […] A situação, de momento, tornou-se complicadíssima e aquele grupo enorme procurou envolver os policiais, que recuavam. […] Do grupo operário foi, então, disparado um tiro de revólver, justamente no momento em que um soldado empunhava a sua pistola. […] A polícia, batendo em retirada, também disparou as suas armas, recolhendo-se à delegacia no Campo de São Cristóvão. […] Havia uma perfeita conflagração, sendo cerradíssimo o tiroteio entre os policiais e os operários. Esses, em dado momento, fizeram explodir uma bomba de dinamite no Campo de São Cristóvão e logo em seguida outra dentro da delegacia. […]
A força de cavalaria do Exército, já então auxiliada pela policia, saiu em perseguição dos operários, que já se achavam desorganizados e corriam em todas as direções, fugindo à cara de cavalaria. […] Estava estabelecida a ordem no Campo de São Cristóvão”. (JORNAL DO BRASIL, 1918b, p. 163 -– 164)
A insurreição se resumiu a um confronto direto com a polícia, caracterizando-se pelo uso de bombas por parte dos operários e pela imposição da ordem por parte das forças repressivas. O objetivo mais amplo da insurreição era concretizar a utopia libertária, tornar realidade a desejada Revolução Social. Pretendiam, armados, derrubar o governo constituído e, a exemplo da Rússia Soviética, formar uma junta de operários e soldados, abrindo caminho, dessa forma, à construção de uma sociedade sem classes e sem exploração, sem Estado e sem dominação.
Após os acontecimentos de 1918 e com a chegada da década de 1920, o anarquismo experimentou um declínio no Brasil devido à forte repressão do Estado após as greves e manifestações de rua, mas também ao sucesso da Revolução Russa, que fez expandir o socialismo no país, situação que proporcionou a vários militantes anarquistas não só auxiliar a formação do primeiro Partido Comunista do Brasil, mas abandonar a filosofia libertária. Devido a forte perseguição a anarquistas durante a Primeira República – ou durante todo período da República brasileira – houve sempre uma preocupação, por parte da militância, a respeito dos textos, livros, jornais e periódicos produzidos em favor do movimento. Essa repressão modelou não só a forma de como era feita a organização e ação dos militantes, mas obrigou mudanças necessárias na produção textual do anarquismo. Para combater a disputa ideológica do Estado, diversas organizações libertárias viram-se forçadas a adotar uma fragmentação textual que auxiliaria numa maior difusão, já que o formato dos textos não serviria, somente, para o estudo ou uma simples perpetuação ideológica, mas desenvolveria um discurso opositor e combativo, além de caracterizar-se como brochuras e folhetos de e para, protesto. Uma forma de difundir ideologicamente o anarquismo, onde a ideia do livro, torna-se apenas necessária quando trata-se de autores e publicações estrangeiras, como fonte “clássica” ou matriz textual e de discussões. As poucas editoras são frutos de um esforço coletivo da militância e das organizações ativas que se opõem ao Estado, com objetivo de lutar e difundir o anarquismo, e não com o intuito de reunião textual.
“[…] diante do fechamento dos canais institucionais de participação política e social a partidos, sindicatos, movimentos políticos, sociais e culturais etc – a atividade editorial, mediante a edição de livros cujo conteúdo se caracterizava pela oposição ao governo da época, passou a ser alternativa para aqueles grupos e pessoas que tentavam atuar e influenciar politicamente de forma publica, mesmo sob um regime ditatorial”. (MAUÉS. 2013, p.12)
O anarquismo materializa a prática em escritos, compilações, livros, periódicos e brochuras que auxiliam a transmissão de ideias sem precisar da presença simbólica de líderes ou personalidades. Existe uma coletivização não só na prática, mas na leitura e estudo do anarquismo. Não basta só o conhecimento histórico ou filosófico, é preciso completar com a prática todo conhecimento adquirido. Para isso, ao longo das décadas, diversas pessoas, editoras, jornais, periódicos e grupos se dispuseram a transmitir o conhecimento anarquista. Foi necessário, como primeiro passo, individualizar a escrita e, consequentemente, a leitura. Contraditoriamente, constituir propriedades literárias na esperança de que esses conhecimentos individuais se expandissem, ganhando uma dimensão coletiva na prática diária ou em grupo e coletivos que seguem o ideário anarquista.
No Brasil, experiências de coletivos e grupos despertaram o interesse para a formação de editoras, jornais e periódicos com abordagens anarquistas, atendendo a um público cada vez mais jovem que, em finais do período ditatorial no Brasil, não teve acesso a essas leituras. Foi nesse momento que houve uma modesta explosão na publicação de livros sobre o anarquismo; editoras, em muitos casos fundadas por anarquistas ou simpatizantes da filosofia libertária, começaram a produzir títulos que englobavam as grandes personalidades anarquistas do século XIX, mas trazendo também os novos rostos do anarquismo contemporâneo: com novas ideias de organização, prática e teoria.
Para concretizar esse objetivo de uma nova repaginação do anarquismo na contemporaneidade, foi preciso modificar as abordagens, o formato dos textos, conduzir a teoria em um sentido que seduzisse as novas gerações. Nessa remodelação do anarquismo, já na década de 1960, com a explosão da contracultura, foi preciso redefinir as abordagens, práticas e formas de organização do anarquismo. Surgiram novas vertentes, defendendo a radicalização, por exemplo, da defesa ambiental, da liberdade sexual. Novos símbolos e novas visões foram incorporados. A teoria anarquista do século XIX tornava-se uma consulta, uma leitura de base, enquanto esse mesmo anarquismo ia modelando-se, transformando-se, adaptando-se ao contemporâneo e às novas formas de comunicação.
O anarquismo ganhou espaço nas universidades, grupos de estudos foram criados para o estudo teórico, mas a prática continuou modesta. Em quase sessenta anos de história no Brasil (após 1920 até finais da década de 1970), o anarquismo encontrava-se ainda em estado letárgico. Se comparado com o socialismo e as publicações anticomunistas, poucos textos,, livros, movimentações sindicais, artísticas, etc., além de poucos nomes, surgiram: Edgar Rodrigues, José Oiticica e Maria Lacerda de Moura (para citar alguns) foram responsáveis pela maioria dos escritos e livros sobre anarquismo.
A educação política do anarquismo depende de uma união entre a prática e a teoria. Se não é possível o acesso aos livros já publicados, são desenvolvidas brochuras e rascunhos. O anarquismo reinventa-se na construção coletiva, não é dependente e nem se limita pela materialidade do livro. Mas, para atender à emergência da propriedade literária, cada vez mais, surgiram novos títulos com a temática anarquista, seja na literatura, na filosofia ou na história. A “grande biblioteca anarquista” simbolicamente é uma transferência de informações, que serve não só para conscientização individual, mas para a formação política da coletividade.
A descontinuidade e a fragmentação da leitura fazem parte do anarquismo por ser, principalmente, uma leitura ameaçadora e de difícil localização, mas isso não prejudica a totalidade teórica dos escritos. Existe uma satisfação moral na união da prática com a teoria. O que foi negligenciado ou ocultado na teoria, pode ser muito bem vivido na prática, na convivência e na ação. O livro só detém a completa efetividade do anarquismo se o indivíduo conduzir a leitura aliada à prática. Em alguns casos, o livro resume-se a uma transmissão da prática, uma forma facilitada de disponibilizar as experiências individuais ou coletivas.
Apesar de a materialidade do anarquismo não ser exclusiva ao livro, é preciso, portanto, transmitir as ideias políticas de formas mais práticas. A escrita é a mais eficaz nesse processo, devido às distâncias. Para isso, não só no Brasil, mas em todo o mundo, foram criadas editoras ou as já existentes passaram a produzir conteúdo libertário, devido, em muitos casos, às demandas coletivas de cada lugar. E foi para atender a essas demandas que a leitura sobre anarquismo se expandiu, em resposta também ao fácil acesso na internet de textos, biografias e compilados sobre anarquismo. No Brasil, editoras conhecidas como Achiamé, Rizoma, Biblioteca Terra Livre e Hedra, dentre outras, se dedicaram a essa tarefa.
Aproveitando a nova demanda pela escrita anarquista, tais editoras adotaram formatos que permitiam a compilação das ideias dos grandes nomes do anarquismo. Segundo Genette: “O aspecto mais global da realização de um livro – e, portanto, da materialização de um teto para uso do público – é, sem dúvida, a escolha de seu formato” (1987, p. 22). Na maioria das publicações sobre anarquismo, o que predomina é o formato “livro de bolso”, denotando um caráter mais popular e acessível. O anarquismo é direta ou indiretamente censurado, não só moralmente, mas também politicamente, seja pelo Estado ou pelo senso comum. Tendo isso em vista, seus livros e textos são divulgados em compilações e traduzidos em formatos minimalistas, condensados, quase uma referência à panfletagem, com capas tímidas, mas que chamam atenção para o possível conteúdo. Com uma fonte maior que os demais livros, compactos, de leitura objetiva e com um público alvo não muito distante dos objetivos das antigas coleções de bolso: os universitários. Trata-se de uma forma de adequar os bolsos à importância de grandes pilares filosóficos ou clássicos da literatura.
[…] A ‘edição de bolso’ – transformou-se num instrumento de “cultura”, de constituição e, naturalmente, de difusão, de um acervo relativamente permanente de obras ipso facto consagradas como “clássicas”. (GENETTE,1987, p. 25)
O anarquismo não acompanhou a massiva produção literária de outros seguimentos da esquerda ao longo dos citados sessenta anos; o esfriamento dessa produção pode ser atribuído não só à repressão do Estado, à expulsão de militantes descendentes de imigrantes e à antipatia moral do senso comum, mas também à diáspora dos militantes anarquistas para os recém formados partidos comunistas, frente ao sucesso da Revolução Russa. O anarquismo, ao longo desse período, não ficou inerte, mas perdeu grande parte da capacidade de produção literária e também se manteve preso às mesmas análises e abordagens, saudoso das experiências sindicais do inicio do século XX, negligenciando outras experiências e outros campos, esquecendo da sua simpatia com aquelas camadas sociais que os socialistas não “desejam” por não fazerem parte da vanguarda proletária. A Revolução Russa trouxe nova vitalidade editorial ao Brasil, elas empreenderam grandes esforços e financiamentos para resgatar a literatura de esquerda no país com a publicação de livros de Marx e grandes expoentes do socialismo europeu. Modesta no inicio, essas editoras publicariam livros que logo seriam absorvidos pela militância, o que foi, gradativamente, influenciando na qualidade e na vastidão de títulos. O sucesso da Revolução proporcionou um avanço editorial considerável do socialismo no Brasil e no mundo, ultrapassa não só as organizações anarquistas no seu protagonismo no seio dos movimentos operários, mas a predominância de textos e editoras libertárias. De lados opostos, e com forças e influencias antagônicas, tanto o socialismo com seu rápido crescimento e o Estado com seu aparato repressivo, contribuíram para um silêncio editorial do anarquismo e, consequentemente, sua constante interrupção, seja na organização e ação, até na produção e divulgação de textos. “Em 1921, após o “comunismo de guerra”, a produção de livros conhece um aumento da ordem de 60% e, embora a estrutura seja centralizada, atual nesse campo mais de duas mil organizações sociais de caráter partidário e/ou cooperativo” (MAUÉS. 2013, p. 15)
Em finais dos anos 70 e inicio dos anos 80, o anarquismo retomou suas publicações com o efervescente movimento punk. Foi nesse período que se formaram jornais, periódicos e a produção editorial retomou sua força. Novas editoras surgiram e as já existentes dedicaram coleções, a principio modestas – principalmente pelo momento político do país, com o movimento das “diretas já!” e uma nova constituição –, ao anarquismo. É na presença do anarquismo na produção editorial brasileira contemporânea que esta pesquisa se concentrará, especialmente na produção da Editora Hedra. Será tomada como principal fonte a coleção “Anarcos de Bolso”, que seleciona títulos e autores consagrados do anarquismo.
Essa pesquisa se sustentará, do ponto de vista teórico metodológico, em estudos de Roger Chartier, “A mão do autor e a mente do editor”, a propósito da história do livro e da leitura e no trabalho de Gérard Genette, “Paratextos editoriais”. Procura-se esclarecer o lugar do anarquismo na história editorial do Brasil – com suporte na pesquisa de Flamarion Maués, “Livros contra a ditadura. Editoras de oposição no Brasil, 1974 – 1984” e Maria Midori Deaecto e Jean – Yves Mollier, “Edição e Revolução” – como é representado, qual o interesse da editora em produzir um seguimento dedicado ao anarquismo, quais títulos foram usados e o porquê.
2 ELEMENTOS EDITORIAIS
A Hedra surgiu como editora no cenário brasileiro em 1999 e publicou, desde então, um vasto número de obras que vão desde a literatura clássica a livros infanto-juvenis, temas contemporâneos e críticas literárias, literatura de cordel e cultura pop, para citar alguns dos interesses. Mas é sobre sua coleção destinada ao anarquismo, denominada “Anarcos de Bolso”, que se concentrará essa pesquisa. Composta por doze livros, representando os “clássicos” da literatura anarquista, com uma seleção de autores e temas que compõem o pensamento socialista libertário, a Série Estudos Libertários:
… reúne obras, em sua maioria inéditas em língua portuguesa, escritas pelos expoentes das correntes libertárias. Importante base teórica para a interpretação das grandes lutas sociais travadas desde a segunda metade do século XIX, explicitam a evolução da ideia e da experimentação libertárias nos campos político, social, e econômico, à luz dos princípios federalista e autogestionário. (HEDRA, 1999, p. 4)
A Hedra reúne autores e uma temática característica do socialismo libertário de finais do século XIX e início do XX, em que a crítica ao Estado, à busca pela liberdade, a solidariedade, a organização operária e a revolução social são os temas mais recorrentes abordados pelos principais nomes da época: Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Emma Goldman, Élisée Reclus e Max Nettlau, Rudolf Rocker, Maurice Cranston Em suas capas, a Editora representa o anarquismo com imagens que destacam a organização e a ação, dois pontos fundamentais que norteiam a filosofia do movimento. A ideia em trazer novos escritos anarquistas para o Brasil permite uma redução no silenciamento editorial que o anarquismo sofre no país (e também no mundo), e mostra o interesse em expandir a literatura libertária em um formato que seja acessível ao público jovem e universitário, alvo da editora.
O objetivo da Hedra com essas escolhas consiste na difusão de um pensamento que, no Brasil, já teve grande expressão e foi a principal linha de frente de oposição ao governo, o anarcossindicalismo – ou sindicalismo revolucionário – no inicio do século XX. Para definir e delimitar seu espaço, a editora seleciona, para construir as introduções e prefácios dos livros, simpatizantes e expoentes do anarquismo brasileiro, nomes que resumem o caráter socialista libertário adotado pela editora para representar a coleção: Alexandre Samis, Carlos Romani, Michel Suaréz, Alex Buzeli Bonomo e Eduardo Colombo; todos eles com forte ligação ao anarquismo, seja pela atividade nas organizações, ou por suas produções intelectuais ligadas ao movimento. A Editora produz uma coleção, aproveitando-se de ensaios e textos fragmentados, para construir uma historiografia do anarquismo, utilizando-se de temáticas que resumem os princípios do movimento, o que permite uma delimitação de um projeto ideológico que determina uma afinidade com o Socialismo Libertário. Essa delimitação ignora outros temas defendidos pelo anarquismo devido ao recorte temporal dado à coleção e as intenções e características dadas pela Editora. Tanto o individualismo, vagamente mencionado em “O indivíduo, a sociedade e o Estado” de Emma Goldman, quanto o primitivismo são ignorados, assim como, por exemplo, o municipalismo libertário,
As introduções, na maioria dos títulos, escritas por autores brasileiros simpatizantes do anarquismo, reúnem informações biografias e destacam os principais temas dos respectivos livros, analisando também a época em que cada autor está inserido, suas contradições e principais ideias. A editora cria na introdução um espaço para as reflexões, detalhadas e minuciosamente discutidas e enumeradas, e a biografia dos autores, sempre relacionando sua vida com o lugar, as agitações políticas e o contexto do período. Em geral é dividida por capítulos, cada um discutindo algumas das ideias expressas nos textos.
Apesar de reunir os principais nomes do anarquismo de finais do século XIX ao início do século XX, a coleção não representa, em sua totalidade, as ideias principais dessas obras, mas apresenta o projeto ideológico da Editora. Não sendo a escolha dos autores e das temáticas acidental, é a Hedra a responsável pela ressignificação destas obras. A partir do momento que delimita seu público a estudantes e universitários, ela rompe com o universalismo presente nos principais textos dos autores. Logo, as ideias representadas nessa coleção são materializações do conjunto das obras com os elementos paratextuais acrescentados pela editora.
Nesse contexto, todas as obras, sem as introduções, não passariam de textos soltos e sem totalidade – mas conservariam seu caráter universalista – que serviriam apenas como expressão de ideias e não teriam o caráter informativo e didático que a coleção possui, já que são os paratextos que dão sentido aos fragmentos textuais reunidos pela editora. Mas as introduções, isoladas dos seus relacionados textos, possuem uma historicidade que acompanha o desenvolvimento do anarquismo ao longo das décadas finais do século XIX e início do XX e serve, também, como catálogo biográfico de seus autores. A coleção não explora a totalidade das obras, seleciona aquelas que fortalecem seu programa, na tentativa de traçar um processo evolutivo do anarquismo, em que o individualismo – vertente excluída do projeto da editora – precisa ser superado em favor de uma identidade socialista.
A introdução (Einleitung) tem uma ligação mais sistemática, menos histórica, menos circunstancial com a lógica do livro. É única, trata de problemas arquitetônicos, gerais e essenciais, apresenta o conceito geral na sua diversidade e sua autodiferenciação. Os prefácios, ao contrário, multiplicam-se de edição para edição e levam em conta uma historicidade mais empírica; respondem a uma necessidade de circunstância…” (GENETTE, 2009, p. 145)
O autor, na coleção da Hedra, não participa da confecção do livro. São os objetivos editoriais que demarcam suas fronteiras e seu significado. O texto é dependente dos elementos paratextuais, pois concede as representações necessárias para o processo de identidade com o anarquismo. Ou seja, textos como os de Bakunin, por exemplo, são representações editoriais cujos significados pertencem à editora, utiliza-se a identidade do autor como correspondência entre o editor e o leitor. Sozinha, a editora não possui as características desejadas e necessárias para representar a ideia anarquista. É preciso haver um terceiro componente que, apesar de ser o desenvolvedor da mensagem, não passa de um coadjuvante na comunicação entre a editora e seu público alvo. Não é a totalidade de sua ideia o importante para o desenvolvimento do livro, mas as seleções do editor que farão daquela obra o que ela é.
A Hedra é uma editora de oposição no momento que confecciona uma coleção voltada ao anarquismo, porém não engajada, pois não explicita em seu programa seus objetivos e sua participação na atuação política do anarquismo. Seria preciso delimitar seu espaço na História editorial do livro anarquista com uma participação direta na organização e no desenvolvimento ideológico. Contudo, contribui significativamente com a produção literária anarquista, auxilia, nesse sentido, a expansão e divulgação da ideia libertária, prejudicada pela censura, seja ela através da clara interferência nos escritos, organização e divulgação, ou na oposição ideológica, realizada através do projeto educacional, midiático, moral, político ou cultural.
Editora de oposição não é necessariamente sinônimo de editora de esquerda […] os referenciais básicos para se saber se uma editora pode ser chamada de editora de oposição são o perfil político e ideológico da editora, determinado pelas simpatias e filiações políticas de seus proprietários e/ou editores, e o seu catálogo de seus livros publicados. (MAUÉS, 2013, p.27)
Dentre todas as introduções produzidas pela Hedra, a única que destaca o confinamento intelectual sofrido pelo anarquismo está no livro escrito por Emma Goldman, “O individuo, a sociedade e o Estado, e outros ensaios”, cujo autor, Carlo Romani destaca o próprio confinamento sofrido pela autora nos meios intelectuais de seu tempo e nos próprios círculos anarquistas, por ela não ter seguido uma trajetória formal de educação e não ter alcançado a universidade.
Antes de tudo – me parece -, pelo fato de ela ser mulher, com a agravante, ainda, de ser anarquista. Substantivo e adjetivo que durante muitos anos se completariam como garantia certa para o confinamento intelectual e o abandono editorial a que ficaram relegadas, seja pelo pensamento dominante, seja até por alguns dos próprios companheiros de luta.
Penso que o fato de ela não ter seguido uma trajetória formal de educação e não ter alcançado a universidade acabou por se tornar um dos motivos de certo desprezo pela sua produção quando comparada à de outros anarquistas da mesma época. (Romani, 2011, p. 10)
Seus escritos sobre a emancipação feminina e seus artigos em defesa das individualidades humanas chegam ao Brasil somente na década de 1960, difundidos durante a passagem de Julian Beck, diretor e ator de teatro nova yorkino, ligado aos movimentos de vanguarda, foi preso juntamente com sua mulher Judith Malina no Brasil, e do grupo Theather, companhia de teatro dos Estados Unidos, adepta da desobediência civil que participou e organizou diversas manifestações contra a guerra do Vietnã, pelo país.
Os paratextos da editora localizam o leitor nos principais pontos de discussão do anarquismo. Antes da introdução e do sumário, logo após as informações editoriais, encontra-se uma seção que serve como bússola dos principais elementos presentes no livro: biografias do autor, tradutor, do responsável pela introdução, além de contar com uma breve sinopse do texto e uma descrição da série “Escritos Libertários”, produzida pela editora.
A princípio, os textos anarquistas não foram produzidos com a intenção de se tornarem livros. Foram desenvolvidos com o objetivo de, através dos discursos autorais, incentivar a organização e difundir uma ideia antiautoritária, libertadora e, em contraposição à iniciativa de instituições e sistemas que apoiam o Estado, moralizadora que, através da conscientização de que os indivíduos podem e devem ser donos do seu próprio destino, espera alcançar a revolução social. Após esse impulso inicial, surgiram autores que buscaram na natureza e nos discursos científicos o apoio para teorias que comprovassem a necessidade do homem de organizar-se e, também, que a autoridade não é um fenômeno natural, mas abstrato, criado e desenvolvido por instituições e classes que possuem interesses dominantes.
O anarquista russo Kropotkin, por exemplo, em sua experiência na Sibéria, produziu textos que contestaram a teoria evolutiva de Darwin, segundo a qual a competição é fator principal para a evolução. Para o russo, é o apoio mútuo o principal fator responsável pelo sucesso de diversas espécies, pensamento que aplicou também às organizações humanas, defendendo a ideia de que somente a solidariedade e a organização sem autoridade são o caminho para a revolução social.
Os textos anarquistas são, em diversos casos, panfletos políticos que foram transformados em livros, excetuando aqueles que têm como objetivo validar o pensamento libertário com fundamentos científicos e filosóficos. São textos cujo objetivo é transmitir uma mensagem rápida e incendiária, que conquiste no impulso transformador dos indivíduos e sua vontade transformadora. Geralmente expressos em ensaios ou textos curtos, que condensam uma ideia e a resumem de forma objetiva e de fácil acesso, foi dessa maneira que o anarquismo conseguiu expandir suas fronteiras em finais do século XIX.
A Hedra buscou nos principais ensaios expressar ideias anarquistas da época. Organizou, através de cada autor, uma seleção de temas que segmentassem as principais abordagens ideológicas do anarquismo. São os autores de cada livro, acompanhado de seus paratextos, que representam os temas abordados. Esse tipo de abordagem facilita, para novos leitores e entusiastas do anarquismo, uma identidade na associação do tema com o autor. Mas, em certa medida, limita aquele autor no espaço temático abordado.
A forma textual, sempre irredutivelmente singular, era a única, mas poderosa, justificativa para a apropriação individual das ideias comuns transmitidas a outros por livros impressos. Assim, paradoxalmente, visando conceituar textos como propriedade individual, eles precisam ser conceitualmente dissociados de qualquer corporificação material particular e localizados na mente – ou na mão – do autor. (CHARTIER, Roger. 2014 p. 142)
Os intertítulos da coleção não são segmentações de um bloco textual único, pelo contrário, são conjuntos de ensaios que servem como capítulos, transformando diversos textos em um só. Alguns livros são e, recebem, o nome de seu único ensaio, a exemplo de Rocker, “Os sovietes traídos pelos bolcheviques”; de Bakunin, “Deus e o Estado”; Maurice Cranston, “Diálogo imaginário entre Marx e Bakunin”, especialmente em se tratando de Bakunin, que escrevia seus pensamentos em cartas e as assinava usando pseudônimos. Após sua morte, Élisée e Max Nettlau, para citar alguns, reuniram seus escritos e publicaram como livros. Essa foi a maneira de Bakunin burlar a repressão e censura aos seus textos e, também, por passar grande parte de sua vida militante preso, viu nessa forma de escrita uma oportunidade de comunicação com companheiros espalhados pela Europa. “A presença de intertítulos é possível, mas não obrigatória, em obras unitárias divididas em partes, capítulos etc., e nas coletâneas.” (GENETTE, 2009, p. 261)
A censura teve um impacto grande nas publicações dos textos anarquistas, mas não só isso, teve grande influencia em como o anarquismo era escrito. Já que era necessário burlar a censura e a perseguição aos militantes, os textos anarquistas precisavam ser curtos, objetivos e de fácil difusão, eram feitos, em sua maioria, em formas de mensagem ou cartas, publicações em revistas e jornais clandestinos, isso transformou a forma como o anarquismo era difundido e, principalmente, como era lido.
Nas releituras e novas edições, o texto anarquista ganha uma nova dimensão, não mais é necessário burlar a censura, era preciso transformar aquele escrito incendiário e moralizante em uma obra cientifica e filosófica. Para isso, um imenso empenho editorial fora criado dentro dos sindicatos e principais organizações anarquistas espalhados pela Europa, Estados Unidos e Brasil, força que só diminuiu com a expansão do socialismo após a Revolução Russa.
Acompanhando essa nova reedição do anarquismo, a Hedra apresenta o movimento como corrente filosófica, projeto político, agente moralizante e catalisador de forças transformadoras, produto da ação militante e, sobre sua História, produz um livro que se propõe como reunião historiográfica. A editora, em seus intertítulos, mostra a necessidade de representar a identidade anarquista através dos escritos autorais. Para determinar essa identidade, surgem títulos que destacam o “Ser” anarquista, “o que é anarquia?”, “onde o anarquismo atua?”, “como é sua organização?” e as propostas de uma nova sociedade.
Os intertítulos atuam como apêndice para o texto principal que nomeia o livro, uma espécie de suporte textual que explica e aprofunda o tema. Em “Escritos Revolucionários”, de Malatesta, a editora utiliza o autor para representar o anarcossindicalismo. Em 19 ensaios resume a filosofia, discutindo desde a organização sindicalista, seus objetivos, programa, o processo até a anarquia e a diferença com o socialismo. A Hedra, em todos os livros, faz com que cada autor seja representado por uma corrente filosófica diferente. Especificamente no livro de Emma Goldman, representa uma possível evolução, parte da ideia de que o individualismo seja, de certa forma, “inferior” ao socialismo libertário, inicia com o ensaio que dá título ao livro, “O individuo, a sociedade e o Estado”, em que o individualismo está no cerne da abordagem. Goldman, inspirada pela ideia de liberdade estadunidense, pensa o anarquismo como um conjunto de indivíduos desejosos da liberdade que, através da organização voluntária, educação e conscientização, buscam a revolução. É, também, uma forte opositora do militarismo e patriotismo, além de ser a única a fazer uma critica mais aprofundada da Revolução Russa.
A fragmentação textual recorrente no anarquismo é usada, pela editora, para segmentar os principais temas e atribuí-los aos autores selecionados. Essa fragmentação nasce como forma de combate à censura, devido ao texto anarquista, a priori, servir para objetivos específicos de difusão nos meios operários. No Brasil, excetuando os momentos de fechamento político, a censura ao anarquismo, de forma geral, parte do antagonismo ideológico ao Estado. É um conjunto de ações que usam as instituições para perpetuar um confinamento editorial à ideologia. Além de ter uma direta influência na escrita, a partir da censura do Estado, e extradições dos principais militantes anarquistas naquele período, é também uma ação moral, em que a educação tem um papel decisivo.
Apesar de todos os esforços do anarquismo brasileiro em usar o sindicato para expandir culturalmente suas ideias, a educação estatal tem papel decisivo na doutrinação infantil, além dos esforços do Estado em produzir uma ideia de modernização e progresso o que, em certa medida, cativa e recebe apoio das classes dominantes. Nesse momento, a fragmentação textual no anarquismo pode ser percebida nos principais jornais e periódicos desenvolvidos no seio dos sindicatos. Essa estratégia, por um lado, faz avançar a difusão do pensamento libertário, permite que mais indivíduos produzam textos que influenciem a organização e ação operária. Contudo, principalmente após o fortalecimento do socialismo no Brasil, com a Revolução Russa, e a necessidade de uma produção editorial mais formal, o anarquismo sofre um impacto na produção textual que duraria, em certa medida, aproximadamente 60 anos. Há ainda produção de livros sobre anarquismo, principalmente de anarquistas brasileiros, mas, em comparação aos livros socialistas, as publicações e surgimento de editoras dedicadas ao anarquismo caem drasticamente. As organizações operárias, sindicatos e centros culturais, que antes publicavam um grande número de exemplares com a temática anarquista, não conseguem competir com a explosão editorial socialista, de um lado porque, dos militantes anarquistas do início do século XX, entre extraditados e os que migraram para formar o primeiro partido comunista brasileiro, poucos se mantiveram nessas organizações, diminuindo consideravelmente as publicações. Após isso, a maioria dos livros sobre anarquismo se confundiam aos escritos socialistas, difundidos em um bloco opositor aos regimes ditatoriais no Brasil.
Tornou-se comum, a partir dessa fragmentação textual, associar cada tema a um determinado autor, pelo interesse em desenvolver determinada temática ou credibilizá-la, associando-a com uma figura de expressão naquela área. Em sua coleção, a Hedra elabora essa dinâmica de forma que o leitor associe uma corrente a um autor específico. Atribui-se um “signo exterior e visível do gênio interior e invisível do escritor para todos aqueles que não eram capazes de visitá-lo e conhecê-lo” (CHARTIER, 2014, p.142).
Aparentemente, isso parece favorecer a filosofia anarquista no que confere identidade à figura autoral. Contudo – agora não mais discutindo seu caráter teórico, mas sua prática – o anarquismo não se define em centralizações; apesar de surgirem ao longo de sua história nomes que possam representar uma ou outra vertente, sua identidade não está limitada às representações e identidades que possam atribuir à anarquia. Foi papel do individualismo romper com qualquer identidade associada a uma vertente anarquista. Max Stirner, William Godwin e, por um tempo, Emma Goldman destacaram sempre a associação voluntária e, muitas vezes, efêmera dentro das organizações anarquistas.
O anarquismo brasileiro raramente é usado em forma de ensaios dissociados do pleno sentido de seu texto original. Para as edições internacionais, ao contrário da nacional, o anarquismo é tratado de forma fragmentada e, por parte das editoras, existe uma necessidade de reunião desses ensaios em um formato que materializa uma ou mais vertentes anarquistas. Mesmo o anarquismo brasileiro sendo censurado e, na sua maioria, publicado em jornais, periódicos e revistas, nunca publicado separado, em um grupo de ensaios. O anarquismo brasileiro não sofreu o fetichismo que o internacional possui em demasia porque sofreu com o confinamento intelectual; em parte pelo Estado e suas instituições e, inconscientemente, devido a experiência na Rússia, do socialismo.
Como consequência desse confinamento intelectual, o anarquismo brasileiro não possui rostos conhecidos. Assim como o Primeiro de Maio foi adulterado como celebração, o anarquismo no país é uma lembrança distante na memória operária. Edgar Rodrigues e José Oiticica, principais autores anarquistas brasileiros, responsáveis por grandes publicações sobre socialismo libertário e anarcossindicalismo, são ocasionalmente citados e lembrados em textos que abordam esse período inicial de movimentação operária. O anarquismo da Primeira República é lembrado em um sentido ancestral, parte de uma história que, em certa medida, está hierarquicamente abaixo do sindicalismo partidário, praticado pelos militantes fundadores do Partido Comunista, que atuaram após sua fundação e foram responsáveis pela atuação e organização dos trabalhadores após 1921. Esse tipo de noção é criada com a expansão do socialismo no Brasil e uma relação moral causada, principalmente, pela rivalidade entre os dois movimentos.
A Hedra contribui com as representações, significações e identidades anarquistas no Brasil desenvolvendo uma coleção que apresenta o anarquismo para seu público de forma objetiva e didática, destacando as principais ideias recorrentes nos autores “clássicos”. É ela que, na escolha dos ensaios, dos autores e das temáticas, apresenta o anarquismo em um molde predeterminado pelas suas orientações ideológicas, mesmo que essas motivações não sejam militantes ou aliadas aos princípios libertários. Vale lembrar que a coleção, antes de ser um combate – consciente ou inconsciente – ao confinamento editorial sofrido pelo anarquismo, é uma mercadoria que precisa ser comercializada, precisando atingir exigências comerciais, contudo, necessitando apenas corresponder ao programa ideológico da editora.
… o editor tem papel central pois atua como “coordenador de todas as possíveis seleções que levam um texto a se transformar um livro, e tal livro em mercadoria intelectual, e esta mercadoria intelectual em objetivo difundido, recebido e lido. (MAUÉS, 2013, p.16)
As escolhas de textos não foram acidentais. A Hedra elaborou sua coleção no intuito de difundir Socialismo Libertário e transforma os autores em signos que representam e dão significado à coleção. Nos doze livros que compõem a coleção, são reunidos os principais ensaios que, didática e objetivamente, constroem para o leitor o que é, como é organizado, quais os objetivos e o que defende o anarquismo. Dentre todos os elementos que compõem a coleção, o mais importante é a figura do autor, pois ele oficializa e credencia as representações dos livros; materializa uma reunião ampla e diversificada de ensaios e os transforma em livro que, finalmente, representam o anarquismo.
Construção Temática da Coleção
3.1 ASPECTOS GERAIS DA COLEÇÃO
O anarquismo nasceu no século XIX como ideologia cujo objetivo principal é a revolução social. Para alcançá-la, constrói práticas e princípios que priorizam a organização – sendo ela ampla e que pode ir da luta individual ao socialismo -, ação direta (sabotagem, greve geral e, como última consequência, a luta armada) e o combate às estruturas estatais e às instituições que apoiam as opressões e desigualdades. Tanto na prática, quanto na teoria, o anarquismo possui amplas frentes de ação: individualismo, coletivismo, socialismo, primitivismo, sindicalismo, feminismo e outras que, apesar da diferença nos meios e nos princípios adotados, tem como objetivo principal a revolução social.
A Hedra, dentro dos doze livros que completam a coleção “Anarcos de Bolso”, expressa princípios comuns ao Socialismo libertário, suas características, principais expoentes, suas práticas e ideias. Organiza sua disposição temática representado-as através de cada autor. Os ensaios e intertítulos, organizados como capítulos, buscam condensar as principais ideias, seguindo a lógica de representação de temas e por autor. Essa configuração permite a associação de ideias com os principais nomes do cenário anarquista, resultando numa construção de identidade em torno da figura do escritor. Dentre os principais temas abordados, os mais significativos são: identidade, liberdade, anticlericalismo, antipatriotismo e militarismo, organização e revolução social. São geralmente acompanhadas pela significância de cada autor, ou seja, as representações temáticas de um resumo biográfico, reúne também a amplitude temática da militância brasileira. O anarquismo brasileiro, nos escritos, nas organizações e nas práticas, abordava esses temas como princípios difusores do anarquismo. Os temas são uma reunião teórica dos principais autores libertários e a prática da militância brasileira nas primeiras décadas do século XX. A editora constrói, através dessas ideias, sua noção de Socialismo Libertário, o que entende como importante parte que compõe a filosofia libertária em finais do século XIX e início do século XX, períodos que são definidos pela amplitude do sindicalismo revolucionário, ou anarcossindicalismo, do comunismo libertário e pela esperança da revolução como ação libertadora.
3.2 IDENTIDADE
Os textos têm como primeiro objetivo a construção da identidade, para isso, escolhem-se ensaios específicos que reúnam a ideia do Ser anarquista e o que significa essa condição. Nesse segmento, a editora escolhe, dentre os autores abordados em toda coleção, três nomes Élisée Reclus, Kropoktin e Malatesta que irão representar as condições do Ser libertário. Não há divisão explícita – apesar dos intertítulos darem uma pequena noção do tema abordado no texto – desses temas. É no direcionamento dos ensaios que se percebem as intenções de construção da identidade representadas pela editora.
Na construção dessa identidade libertária, os ensaios constantemente referem-se ao leitor sendo ele também anarquista, como se aquele texto fosse um diálogo entre indivíduos que possuem as mesmas convicções. O que é comum em textos sobre o anarquismo, como que, de alguma forma, o resultado daquelas conclusões fosse uma reunião dos aprendizados e das contribuições da militância ao redor do mundo. Isso fornece grande influencia na criação de uma identidade anárquica pois, a comunicação autor/leitor, fornece um senso de participação, uma integração e solidariedade entre as partes. O anarquismo oitocentista possui um caráter agregador, característica que o contemporâneo falta. Essa integração está relacionada com a necessidade de criar uma identidade universalista, ou de uma organização que supere as fronteiras, que reúna todos os explorados em uma classe comum que coopere entre si, portanto, a estreita comunicação e a ideia do desenvolvimento comum de uma teoria, cria uma noção unitária que transcende barreiras políticas criadas pelos Estados Nações. Para esse fim, os texto estão carregados de um sentido moralizante, em que o autor, apesar de considerar o leitor um anarquista, decide instruí-lo no que é ser um anarquista.
[…] Pois somos anarquistas, isto é, homens que querem conservar a plena responsabilidade de seus atos, que agem em virtude de seus direitos e de seus deveres pessoais, que dão a um ser seu desenvolvimento natural, que não têm quem quer que seja por senhor e não são senhores de ninguém. (RECLUS, 2016, p. 45)
Na construção da identidade, os textos também definem, com maior especificidade, os terrenos da luta libertária, seus inimigos, como deverá ser conduzida a luta e as armas necessárias para alcançar a revolução social. Kropotkin apresenta os inimigos do anarquismo em seu ensaio “O princípio anarquista” – “os anarquistas e, contra eles, todos os outros partidos, qualquer que seja sua etiqueta” (2016, p. 36) – em que contextualiza a luta e a conquista dos principais espaços de movimentação operária, define, também, o anarquismo como único meio para liberdade:
contra todos os partidos, os anarquistas são os únicos a defender por inteiro o principio da liberdade. Todos os outro gabam-se de tornar a humanidade feliz mudando ou suavizando a forma dos açoites.
Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, salário e fome nunca foram, e jamais serão, um elemento de progresso; e se já há progresso sob um regime que reconhece esses instrumentos de coerção, esse progresso é conquistado contra esses instrumentos, e não por eles. (Kropotkin, 2012, p. 36)
Malatesta aborda a identidade ligando-a à capacidade e intenção de organização de cada indivíduo. Está na associação e participação a grupos de ação a verdadeira forma de identificar o Ser libertário de um indivíduo. É através da organização que se formará a identidade e, consequentemente, os demais princípios, além de conter o gene responsável pela revolução social: “…se não se pode realizar de imediato a anarquia, não é carência de teoria, mas devido ao fato de que todos não são anarquistas, e os anarquistas ainda não têm força para conquistar sua liberdade e fazê-la respeitar. (MALATESTA, 2011, p. 131).
3.2 LIBERDADE
A editora aborda a liberdade no anarquismo através das ideias de Bakunin. Isso não implica a ausência desse tema nos demais títulos, entretanto, é através desse autor que se condensa o maior esforço em representar uma noção específica de liberdade, distante da ideia, por exemplo, presente nos textos de Emma Goldman. A ideia bakuniniana de liberdade é um antagonismo entre o natural e a autoridade divina.
A liberdade parte do reconhecimento das leis naturais, sendo a rebeldia contra essas leis impossível. A ausência da liberdade, segundo o autor, é consequência do desconhecimento dessas leis, e pelo não reconhecimento da ciência que poderia servir como educação para as massas. “Em relação às leis naturais, só há, para o homem, uma única liberdade possível: reconhecê-las e aplicá-las cada vez mais, conforme o objetivo de emancipação ou de humanização coletiva e individual que ele persegue” (BAKUNIN, 2014, p. 60). E continua: “A liberdade do homem consiste unicamente nisso: ele obedece às leis naturais porque ele próprio as reconhece como tais, não porque elas lhe foram impostas exteriormente, por uma vontade estranha, divina ou humana, coletiva ou individual qualquer”. (BAKUNIN, 2014, p. 61).
Para Bakunin, a liberdade não vem como proposta solitária e utópica, mas como antagonismo à autoridade, Igreja, Estado e toda forma de poder através de sistemas que escravizem o homem. A rebeldia é fruto desse antagonismo e o que gera todo o desenvolvimento que concede a liberdade a todos os indivíduos. Deus, autoridade máxima no cristianismo, é a negação da humanidade: “a ideia de Deus implica a abdicação da razão e da justiça humana; ela é a negação mais decisiva da liberdade humana e resulta necessariamente na escravidão dos homens, tanto na teoria quando na prática” (BAKUNIN, 2014, p. 50).
É através do conflito com a religião e toda e qualquer ideia que limite a humanidade, que o homem constrói sua liberdade. É a partir desse antagonismo que surge a rebeldia, fruto do reconhecimento e rejeição de toda autoridade, exceto a natural. Bakunin tem, diferente de outros autores anarquistas e, também, liberais e socialistas, uma noção de liberdade distinta. Ele concebe a liberdade como condição coletiva, ninguém pode ser livre sem que todos o sejam: “… a liberdade e a prosperidade coletivas só existem sob a condição de apresentar a soma das liberdades e prosperidades individuais” (2014, p. 95).
Apesar da necessidade antagônica, a liberdade idealizada por Bakunin ainda pode ser entendida como fenômeno natural, dependente das ações de rebeldia humanas, mas inerente à humanidade. Consequentemente, por mais duradouras que as explorações sejam, em determinado momento, a rebeldia humana encontrará o caminho para destruí-la, iniciando um movimento libertador.
3.3 ANTICLERICALISMO
Além da crítica ao Estado, a filosofia anarquista carrega um sentimento fortemente anticlerical, presente com maior ênfase e crítica nos textos de Bakunin e Reclus. A religião, Deus e a Igreja, são vistos como um atraso para humanidade, contaminam o espírito humano, roubam-lhe iniciativa e criatividade. Bakunin associa a escravidão humana à existência de Deus, afirmando: “Se Deus existe, o homem é escravo; ora, o homem pode, deve ser livre, portanto, Deus não existe” (2014, p. 55). A simples existência de Deus é condição que limita a humanidade, para isso, segundo Bakunin: “se Deus existisse, só haveria para ele um único meio de servir a humanidade; seria o de cessar de existir” (2014, p. 58). Reclus, ao contrário de Bakunin, ataca não só a metafísica e as condições etéreas da religião, mas seu próprio corpo institucional. A crítica anarquista à Igreja Católica está ligada à posição privilegiada que, não só da instituição, mas dos indivíduos que a compõem e que enriquecem a custa de um povo bestializado por eles.
Enquanto os padres, monges e todos os detentores de um poder pseudodivino estiverem constituídos como liga de dominação, é preciso combatê-los sem trégua, com toda energia de sua vontade e com todos os recursos de sua inteligência e força […] essa luta encarniçada não deve impedir de maneira alguma que conservemos o respeito pessoal e toda simpatia humana por cada individuo cristão, budista ou fetichista desde que sua força de ataque e de dominação tenha sido vencida. (RECLUS, 2016, p. 53)
Não é, portanto, como apresentado por Reclus em seu texto, a luta contra religião e a Igreja destinada aos indivíduos, mas sim às instituições religiosas. A crítica anticlerical tem como objetivo o combate à noção metafísica usada pela Igreja e por seus líderes para dominar as massas. Há um processo de conscientização, através de uma educação racional e crítica, dos indivíduos que são manipulados pelas superstições criadas por essas instituições. Diferente de Bakunin, Reclus defende que a educação é a estratégia ideal para construir o caminho para liberdade, pois só assim é possível conscientizar os indivíduos e restaurar seus impulsos criadores e rebeldes.
[…]Pela propaganda de cada dia, retiremos dos padres as crianças que se lhes dão a batizar, os meninos e as meninas que eles “confirmam na fé” pela ingestão de uma hóstia, os jovens que eles tencionam unir, os infelizes que maculam fazendo nascer o pecado em sua alma pela confissão, os moribundos que eles aterrorizam ainda no último momento da vida. Descristianizaremos o povo! (RECLUS, 2016, p. 56)
Reclus entende a escola como um ambiente propício para o desenvolvimento crítico de cada indivíduo, um local, assim como deve ser a sociedade, “sem deus nem amo”, mas que são usados como “centros nos quais ensinam a obediência a deus e, sobretudo, a seus representantes, os mestres de todo tipo, padres e monges, reis e funcionários, símbolos e leis” (2016, p. 59).
3.5 ANTIPATRIOTISMO E MILITARISMO
O antipatriotismo e militarismo, ao contrário das outras temáticas, estão presentes nos ensaios de Emma Goldman, em parte por sua preocupação em criticar tais temas, mas também por relacionar o crescente militarismo na Alemanha, tido como causa para a Primeira Guerra Mundial, e o americano, que surge com forte sentimento patriótico e defesa de uma crescente militarização. A autora, em seus ensaios, “O patriotismo, uma ameaça à liberdade” e “A preparação militar nos conduz direto ao massacre universal”, aponta o patriotismo como “princípio que justifica a instrução dos indivíduos que cometerão massacres em massa”, responsável por apoiar o desprezo, arrogância e egoísmo, mas limita sua influência às massas, não influenciando aqueles que detêm o poder e a riqueza.
Pede-se ao povo para ser patriota e, para esse luxo, ele paga não sustentando seus ‘defensores’, mas sacrificando seus próprios filhos. O patriotismo exige uma vassalagem total à bandeira, o que implica obedecer e estar pronto a matar seu pai, sua mãe, seu irmão ou sua irmã. (GOLDMAN, 2011, p. 64)
O patriotismo ameaça a liberdade, pois, dentro de seu ideal, existe a constante criação de inimigos, externos e internos, o que prejudica na solidariedade, organização e associação dos indivíduos explorados pelo Estado. A centralização de poder cria solidariedade entre potências que compartilham sistemas tidos como democráticos, mas reprime a união universalista dos trabalhadores. Para garantir a perpetuação das ilusões criadas pelas nações, exércitos garantem a ordem interna e servem, também, como demonstração de poder entre essas mesmas potências. Unidos, patriotismo e militarismo, são responsáveis não pela manutenção da paz, ideia defendida pelas nações, mas como garantia dos interesses daqueles que detêm o poder e as riquezas.
Para permanecer vivo, o militarismo necessita constantemente de energia suplementar; eis por que ele buscará sempre um inimigo ou sem sua ausência, criará um artificialmente. Eis seus objetivos e seus métodos civilizados, é sustentado pelo Estado, protegido pelas leis, mantido pelos pais e pelos professores, glorificado pela opinião pública. Em outros termos, a função do militarismo é matar. Ele só pode viver graças ao assassinato. (GOLDMAN, 2011, p. 56)
O patriotismo serve como suporte para a manutenção do militarismo, ideia difundida pelo Estado através da educação e instituições que compõem a sociedade: família e igreja, por exemplo. Cultiva uma relação fraternal com o Estado, intimamente mantida através de signos que representam uma falsa liberdade e harmonia, contudo, as relações individuais entre as massas são mantidas, a fim de forçar uma competição que será motor e alimento para disputas criadas para manter grupos distantes e, assim, longe de uma solidariedade e associação.
3.6 ORGANIZAÇÃO E REVOLUÇÃO SOCIAL
O anarquismo possui numerosas formas de organização, é o critério que divide a filosofia em diversas vertentes, distintas uma das outras, mas que compartilham um mesmo objetivo: a revolução social. Esse ponto é o mais importante da coleção, pois traz, minuciosamente, a seleção de ensaios que produzem a ideia de anarquismo escolhida pela editora para representar o Socialismo Libertário. É através dos textos de Malatesta que a Editora reúne os princípios que representarão sua estratégia. Existe um imenso empenho de autores anarquistas para produzir textos que descrevam uma forma ideal de organização, como é o fator determinante para a ruptura das vertentes libertárias. A escolha de um ou outro tipo de organização determina a escolha por uma corrente específica do anarquismo. A materialização do Socialismo Libertário não é exclusiva aos textos de Malatesta. Apesar de ser uma escolha da editora, existem diversos outros expoentes do anarquismo que produziram textos que têm a organização como preocupação principal. Por ser italiano – nacionalidade de grande parte dos imigrantes –, o autor foi bastante lido nos círculos e influenciou grande parte da ação do anarquismo brasileiro.
Há um grande apelo moral e de uma “identidade verdadeira” nos escritos de Malatesta. Em seus ensaios destinados à organização, o autor se dirige especialmente aos militantes, como forma de instrução sobre a organização e, constantemente, produz um discurso crítico sobre a identidade anarquista. Defende um maior interesse por parte dos militantes na construção da organização e associação anarquistas.
Para se tornar anarquista, de modo sério, e não somente de nome, é preciso que comece a sentir a solidariedade que os une a seus camaradas, é preciso que aprenda a cooperar com os outros na defesa dos interesses comuns e que, lutando contra os patrões, compreenda que patrões e capitalistas são parasitas inúteis e que os trabalhadores poderiam assumir a administração social. (MALATESTA, 2011, p. 94)
O objetivo dos anarquistas, dentro das organizações operárias, não é liderar, coordenar ou servir de vanguarda intelectual aos trabalhadores. Por criticar a autoridade, seja ela qual for, e a hierarquia, os anarquistas defendem que “o novo modo de vida social saia das entranhas do povo e corresponda ao grau de desenvolvimento atingido pelos homens e para progredir à medida que os homens avançam” (2011, p. 95). Impor-se como único caminho para liberdade e revolução “não seria o triunfo da anarquia, mas nosso”. Malatesta defende a criação de núcleos em torno dos quais as massas possam reagrupar-se rapidamente, “tão logo elas sejam liberadas do peso que as oprime”.
Não há vida no isolamento, o homem é impotente, incapaz de ter uma “vida superior” sem organização – o que para Malatesta é o sinônimo de sociedade. Anarquia significa organização sem autoridade (como finalidade de impor sua vontade) e o “fato inevitável e benéfico de que aquele que compreende melhor e sabe fazer uma coisa consegue fazer e aceitar mais facilmente sua opinião” (2011, p. 106). Aquele que detém qualquer tipo de conhecimento útil para a sociedade ou o grupo que participa serve como guia, reconhece que sua posição de “liderança” é passageira e limitada àquela atividade que domina ou tem maior conhecimento. A alternância de “autoridade” tem como propósito o conhecimento, a educação, uma distribuição intelectual ou prática de uma determinada função. A autoridade não é necessária para organização social enquanto houver harmonia de interesses em sua coletividade, enquanto ninguém pode frustrar outras pessoas, não há sinal de autoridade.
É preciso não só organizar-se, mas, ao identificarem-se com o programa, é preciso aplicá-lo. A anarquia, segundo Malatesta, não existe sem a prática; para isso, a associação serve como caminho para realização das ações. Há amplas formas de se concretizar a prática anarquista, uma delas sendo os jornais e periódicos, comuns na Itália como forma de transmitir o ideal libertário. Pela maior parte dos imigrantes estabelecidos no Brasil ter sido de origem italiana, essa prática foi largamente defendida como sendo o mais eficaz, tendo duas consequências: a fragmentação textual, produção de ensaios curtos, objetivos e de fácil difusão, o que acabou caracterizando a escrita e os textos anárquicos; e a maior aceitação nos meios operários, até o início da década de 1920, pelo difícil acesso e produção dos livros de esquerda, socialistas e anarquistas: “Precisamos de um jornal. Se estamos organizados, podemos reunir os meios para fundá-lo e fazê-lo viver, encarregar alguns camaradas e redigi-los e controlar sua direção” (MALATESTA, 2011, p. 112).
O sindicato, enquanto programa e prática para se alcançar a revolução social, foi apontado por Malatesta como sendo um caminho que só teria sucesso se houvesse um comprometimento com a emancipação dos operários. Ele acreditava que o sindicato era, por natureza, reformista, portanto, ceifador do espírito revolucionário, que frequentemente buscava interar o corpo do Estado e não sua destruição. Seria preciso reforçar e trabalhar constantemente para manter o espírito revolucionário, sendo assim o único meio para tornar o sindicato uma organização revolucionária:
[…] o sindicato operário é, por sua natureza, reformista, não revolucionário. O espírito revolucionário deve ser-lhe levado, desenvolvido e mantido pelo trabalho constante dos revolucionários que agem fora e dentro do sindicato, mas não pode provir de prática natural e formal. (MALATESTA, 2011, p. 126)
Diferente da concepção bakuniniana e defendida na Primeira Internacional, que postula que a nova sociedade se realizará pelo ingresso de todos os trabalhadores nas seções da Internacional, Malatesta defende que a nova sociedade só pode ser erguida “destruindo os quadros e criando novos organismos correspondentes às novas condições e aos novos objetivos sociais” (2011, p. 128). Esse ideal desenvolve-se para combater o corporativismo, que seria um obstáculo à satisfação das novas necessidades da sociedade.
A organização nada mais é que a prática da operação e solidariedade, condição natural e necessária da vida social, fato inerente que se impõe a todos, tanto na sociedade humana em geral quanto em todo grupo de pessoas que tenha um objetivo comum a alcançar. Para isso “as organizações anarquistas devem, em sua constituição e em seu funcionamento, estar em harmonia com os princípios a anarquia” (2011, p. 164). Toda e qualquer organização serve um propósito final, à revolução social.
Do século XIX até meados do XX, anarquia significa revolução social, período de rompimento que destruirá as fundações do Estado e suas instituições, sua moral opressora e unirá os trabalhares, harmonicamente, em torno da solidariedade e associações livres, que construirão uma nova sociedade. Após, aproximadamente, a década de 1970, essa concepção de anarquia transforma-se em uma ideia de “paraíso prometido” que, apesar da revolução social ser o caminho, a construção de uma nova sociedade se torna uma construção fantástica de um mundo onde a liberdade, solidariedade e organização livre é a moral comum a todos.
Em um primeiro momento, o conceito de revolução social e anarquia possui um caráter racional e pragmático que relaciona a ação e organização com o resultado final causado por esses impulsos. Com o acréscimo de novas concepções e ideias de organização, além de novas frentes de luta, o anarquismo fragmenta-se em mais vertentes que concebem o futuro da sociedade como um caminho alternativo à revolução, como alternativa para a sociedade estabelecida, o isolamento organizado de indivíduos que, partindo de uma concepção primitiva de constituição social, afastam-se e criam uma nova sociedade, guiando-se por uma nova concepção moral, ocasionalmente, baseada em princípios anarquistas.
A Hedra adota como representação da anarquia, ou revolução social, a primeira concepção, comum ao século XIX e início do XX, que a revolução é o produto final da organização e materialização do ideal anarquista. Emma Goldman, em seu ensaio “A revolução social é portadora de uma mudança radical de valores”, concebe a revolução como processo independente do desenvolvimento industrial e das “poderosas contradições sociais”, que não espera o desenvolvimento de tais situações para concretizar-se como revolução. A revolução “funda-se num desejo ardente de liberdade, nutrido por um século de agitação revolucionária entre todas as classes da sociedade” (2011, p. 79).
Segundo Goldman, o desenvolvimento e o sucesso da revolução dependem da extensão do gênio criativo do povo, da colaboração dos intelectos e o proletariado manual. Para Kropotkin a revolução é “inevitável, tudo leva a ela, tudo contribui para isso. E embora a resistência governamental possa ajudar a adiar a data de sua eclosão, entravar seus efeitos, não pode impedi-la” (2012, p. 40). Anarquistas defendem a revolução como fato inevitável, como consequência da organização social atual. Diferente da concepção socialista, no anarquismo não há período intermediário entre o sistema vigente e a revolução social.
Para nós, a revolução social a ser feita apresenta-se sob o espectro de uma longa sequencia de lutas, de transformações incessantes que poderão durar longos anos, em que os trabalhadores, derrotados de um lado vencedores no outro, chegarão gradualmente a eliminar todos os preconceitos, todas as instituições que esmagam, e em que a luta, uma vez começada, só poderá chegar ao fim quando, tendo finalmente destruído todos os obstáculos, a humanidade puder evoluir livremente (KROPOTKIN, 2012, p. 42-43)
Na sua coleção, a Hedra não só aborda os temas comuns ao anarquismo do período “clássico”, mas as principais ideias difundidas pelos militantes brasileiros. Através de ensaios, jornais, periódicos e eventos culturais, anarquistas brasileiros difundiram essas ideias a fim de organizar, conscientizar e moralizar os operários contra o Estado e as instituições que os apoiam. Portanto, os temas, ensaios, títulos e autores não só representam o cenário anarquista internacional, ou são resultados de uma representação filosófica do anarquismo, na verdade é, apesar do uso de anarquistas estrangeiros, uma materialização do que foi o anarquismo no Brasil no início do século XX, através das principais ideias que eram utilizadas em seu meio de atuação. O anarquismo apresentado pela editora é uma reunião que combina a teoria dos autores “clássicos”, com a prática da militância brasileira. Determina, assim, os limites e fronteiras da organização, dos princípios e da Filosofia.
O anarquismo descrito pela Hedra em seus doze livros é uma materialização do anarquismo brasileiro, apesar de usar autores do século XIX, determina uma nova representação e identidade para o movimento. Busca nos ensaios uma representação daquilo que foi o anarquismo nas primeiras décadas da Primeira República, resgatando uma historiografia e relacionando-a com a prática da militância libertária. O Socialismo Libertário é a estratégia do programa editorial da Hedra porque dialoga com as primeiras experiências anarquistas no Brasil, independente se as aspirações dos criadores da coleção estão alinhadas com essa tática – mas se estão, é consequência das práticas desse período – a coleção fornece uma representação dessas experiências, mesmo que por meio de outras identidades, signos e símbolos.